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Os chineses da Olimpíada avançaram mais um pouco na fantasia e se sabe agora que parte da beleza dos fogos de artifício que deslumbraram os expectadores nos céus de Pequim foi criada em computadores

A revelação de que a doce chinesinha que quase 2 bilhões de pessoas viram cantando a Ode à Pátria na abertura da Olimpíada era na realidade uma dubladora da cantora real, que tinha uma voz celestial mas que não era "bonita o suficiente" para se apresentar ao público, me deixa pasmo, pois revela muito mais do que um truque midiático. Essa reedição do Cyrano de Bergerac na era digital é a definitiva consagração de uma visão essencialmente narcisista do mundo e das pessoas, da hipervalorização da beleza física e da divisão do mundo entre os feios – grande maioria – e os belos. Vinícius de Moraes, que era um pândego assumido, certamente estava brincando quando disse que "as feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental", pois um poeta com sua sensibilidade seria incapaz de frustrar os sonhos dos milhões de feios e feias que beberam seus versos: "E de te amar assim, muito e amiúde, é que um dia de repente hei de morrer, de amar mais do que pude."

Os chineses da Olimpíada avançaram mais um pouco na fantasia e se sabe agora que parte da beleza dos fogos de artifício que deslumbraram os expectadores nos céus de Pequim foi criada em computadores. Logo eles que inventaram os fogos... O que parecia verdade era mera verossimilhança. Que há de errado nisso? Nada, não fosse o fato de que realidade e ficção, jornalismo e arte cênica se misturaram sem que os expectadores possam entender onde acabou um e começou a outra. E se isso pode ser feito para simplesmente embelezar ainda mais uma coisa que já era belíssima, pode também ser feito para fins menos defensáveis. Todos sabem que as revistas masculinas "retocam" as imperfeições de seus modelos, que – milagre da natureza – são sempre deusas que não apresentam uma imperfeição sequer, um defeitinho, mesmo que de minúscula proporções, mas nesse caso uma fantasia a mais ou a menos para alguém que já compra a revista para satisfazer outras fantasias mais profundas, não faz mal nenhum. No entanto, essa fuga da realidade pode assumir caráter mais sério. Quando O. J. Simpson estava sendo julgado pela morte da ex-mulher e do amigo dela, a revista Newsweek publicou uma foto de capa em que ele tinha um aparência simplesmente sórdida, de alguém capaz de cometer todas as torpezas. Descobriu-se depois que a foto havia sido retocada com Photoshop para acentuar a aparência maligna, o que rendeu muitos protestos à revista por ter cruzado o limite entre a realidade e a ficção sem avisar os leitores. "Eventually", finalmente, parece ter ficado evidente que ele era realmente um tipo sórdido mas o fato é que a foto divulgada meses antes simplesmente não correspondia à sua aparência real.

Essa fluidez da fronteira entre o real e o imaginário é preocupante porque, a cada dia, somos mais bombardeados por "informações" e , de repente, podemos nos transformar em vítimas daquilo que Guerreiro Ramos chamava de "política cognitiva", em que os instrumentos da cognição são manejados por alguns para fazer avançar seus interesses e suas crenças. Para dar um exemplo até caricato mas que vira e mexe circula na internet: um mapa do Brasil, supostamente incluído em livros didáticos americanos, em que a Amazônia está excluída do território nacional. Depois de receber várias mensagens "alertando" para esse risco à soberania, tive a pachorra de pesquisar o assunto, mandar buscar livros didáticos nos Estados Unidos e não encontrei nenhum exemplar de qualquer livro que mostrasse o tal mapa. Estou convencido de que, mesmo que a intenção dos autores da maquiagem do mapa tenha sido nobre, a de alertar para a cobiça sobre a Amazônia, foi mais um trabalho de Photoshop que outra coisa.

Estou certo? Para provar que não, basta exibir uma cópia do tal livro. Sem isso, mil palavras não bastarão para me convencer. Aliás, o provérbio "mais vale uma imagem que mil palavras" é outra ilusão chinesista. Quem o criou não foi Confúcio e sim um publicitário americano.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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