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Missão Integral: uma nova terminologia para ignorar a história da teologia.
Missão Integral: uma nova terminologia para ignorar a história da teologia.| Foto: Pixabay

Quando lemos os jornais e revistas, percebemos a variação de modas e estilos de vida. As propostas variam de acordo com o freguês. Algumas modas vão e vêm. Outras passam rapidamente e são esquecidas. Estilistas, na sua criatividade, tentam reinventar algo do passado com alguns aspectos modificados para ter uma aparência mais moderna.

Infelizmente isto se aplica quando temos acesso às obras teológicas e da história do pensamento cristão ao se comparar com os pensamentos dos novos teólogos da pós-modernidade. Não há diferença com o estilo do mercado da moda ou do entretenimento. Surgem novos conceitos ou marketings para trazer à tona velhas heresias. Poderia, aqui, falar da modinha do “coaching gospel”, mas neste momento focarei naquilo que está em debate nacional como bandeira do politicamente correto ou padrão correto de vida e política: as pautas sociais.

Na teologia moderna, surgiu um conceito chamado “Teologia da Missão Integral da Igreja”. Em 1962 começou o Concilio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII. Entre os objetivos do concílio estava oferecer uma “cara” mais social da Igreja Católica. O desdobramento disto foi a criação da Teologia da Libertação, que nasce nas comunidades de base da América Latina e tem como seu principal expoente o teólogo Leonardo Boff. Com uma lente marxista na interpretação bíblica, o movimento foi criticado e julgado por inúmeros teólogos da Igreja, inclusive pelo hoje papa emérito Bento XVI, a maior mente teológica viva do catolicismo. O movimento evangélico ofereceu uma resposta à Teologia da Libertação na Conferência de Lausanne, em 1974. Ali se pensou numa teologia que tocasse a realidade latino-americana e que não ficasse refém do pensamento europeu.

Como tende a acontecer em todo movimento, também este ficou solto e muita gente começou a construir sua corrente dentro da Teologia da Missão Integral. O que aconteceu? Ela, em sua grande maioria, tornou-se enviesada para um posicionamento político de esquerda. Passou-se a pensar a interpretação bíblica e as ações da igreja evangélica meramente por questões sociais, abrindo mão da proclamação do evangelho e da salvação em somente em Cristo Jesus.

O que eu quero dizer com tudo isto? É que, de forma usurpadora, o movimento partidário esquerdista se apropriou de um comportamento social da igreja que nunca foi politizado ou manipulado para um viés ideológico. A Teologia Neotestamentária, os Pais da Igreja e a Reforma Protestante sempre tiveram um posicionamento ortodoxo e conservador em relação à fé cristã. O movimento evangélico ou católico não pode e não tem o direito de fazer das lutas sociais uma pauta da esquerda, como se eles fossem os guardiões da pureza social e os únicos a se importar com a desigualdade e a injustiça. Isto é uma mentira política, histórica e teológica.

Ora, a missão da igreja nunca foi integral? Somente agora a igreja preocupa-se com a totalidade da vida humana e a realidade de toda a criação? Não. É grande engano defender isso. Pensar desta forma é ignorar toda a contribuição que nos foi legada por nossos pais na fé.

Ouvir o discurso da Missão Integral na boca de alguns teólogos leva-me a pensar que a roda foi inventada agora. São pessoas inteligentes que utilizam este discurso. Tenho certeza de que conhecem a história, mas não a valorizam.

Martyn Lloyd-Jones falou, no encerramento de uma conferência teológica em 1969, sobre a possibilidade de se aprender com a história. O notável filósofo alemão Hegel chegou a afirmar que o que aprendemos da história é que não aprendemos nada com a história. Isto é um fato.

Temos uma nova terminologia para ignorar a história da teologia. A proposta da Missão Integral é de se pensar. Não estou desfavorecendo a sua reflexão. Apenas não há como concordar que este conceito seja novo. Há uma desvalorização da história.

A igreja entende que a sua ligação com o Estado é zero. Mas a igreja não pode estar em momento algum isenta de toda a movimentação socioeconômica do país, principalmente quando se trata do futuro da nação. A eleição de um tirano, por exemplo, deve mobilizar a igreja para uma atitude radical que conscientize a população dos riscos que virão.

O Estado está para beneficiar o povo. Numa compreensão teológica, o Estado é instituído por Deus para governar a sociedade visando o seu bem-estar. Um governo que não atende as necessidades básicas do povo não pode ser considerado um governo real.

O homem foi criado para a paz e uma vida boa, mas o pecado maculou o maravilhoso propósito de Deus. A ideia de um poder constituído é exatamente trazer a ordem da criação. No plano de Deus, não haveria na terra desigualdades sociais, exploração, guerra, mas harmonia e justiça. Seria uma terra sem estratificação social nem fronteiras nacionais. A terra de Deus era uma terra para os homens, com todos nela trabalhando e dele se beneficiando, sem egoísmos privativistas. A verdadeira teologia bíblica é bem clara a esse respeito. Ela se opõe contra todo sistema opressor. Não é o povo que os serve, mas o governo e toda a sua política estão para o serviço do povo. Um Estado que não é servo do povo não pode ser legitimado. A pessoa que chega ao poder e perverte o direito do cidadão pode ser considerada um ditador e seu governo, diabólico.

Os cristãos de hoje não olham com atenção devida para os fatos sociais da forma como os nossos pais na fé os olharam. Neste sentido, Nietzsche está certo em criticar os cristãos com o ideal de duplicação de mundos. A visão bíblica cristã de hoje abre mão deste mundo em busca de um mundo superior. Isto nada mais é que uma inversão de valores. O modelo sócio-político-econômico da legislação mosaica, vontade de Deus, nos aponta um dinamismo existencial, uma possibilidade concreta de, no aqui e agora, vivermos algo do reino e de seus valores. O povo de Deus deve assumir a sua humanidade, criando instituições sociais adequadas.

Deve ficar bem claro que o cristão não foi criado para o céu, mas para a terra. A experiência do reino messiânico é para uma terra transformada, onde a vida possa ser vivida em sua plenitude e integralidade.

A história da humanidade mostra o quanto o homem desconsidera o seu próximo. O ser humano tem uma capacidade de ver no outro um inimigo. Não entende que é parte com ele em tudo na criação. Falta esta compreensão de organismo vivo.

Os teólogos e pastores do passado entendiam a vida social baseada na interpretação bíblica. Todo tipo de engajamento visava cumprir o mandamento divino – zelar, cuidar, honrar e respeitar a vida humana e tudo o que implica o bem-estar do homem.

A Reforma Protestante ocorrida no século 16 não foi somente um movimento espiritual e eclesiástico. Teve, também, aspectos e dimensões políticas e sociais. Existiu uma preocupação com o tema social e o valor da vida humana. Ulrico Zwínglio abriu um asilo para todos os indigentes enfermos. Houve uma reforma social em que o ser humano foi o alvo. Em 1520, um decreto do Conselho Zuriquense reorganizou a assistência. Os donativos e contribuições foram centralizados e distribuídos por funcionários juramentados. Após a supressão dos conventos, em 1525, os bens destes eram destinados ao atendimento dos pobres em suas necessidades. A mendicância foi proibida e o asilo recebeu, além de pessoas enfermas, os indigentes, a quem se distribuíam recursos em dinheiro e em espécie. Instalou-se uma rouparia e todos os dias, às primeiras horas da manhã, um caldeirão já estava à disposição de quantos desejassem um prato de sopa.

Em cada bairro, havia um eclesiástico e um leigo para obter as informações necessárias e coletavam os donativos. Sopas populares foram instituídas para os estudantes necessitados. As igrejas e paróquias rurais assumiam o cuidado de seus indigentes e não fazê-los buscar auxílio em outros lugares. Deve ser destacado, para a memória de Zwínglio, que ele foi o responsável pela abolição da servidão nos campos, no tempo da guerra dos camponeses, e a destinação dos dízimos aos indigentes e aos enfermos. Já no dia 10 de agosto de 1535 o Conselho decidiu fazer um inventário dos bens eclesiásticos. No dia 29 de novembro, Zwínglio decretou a fundação de um Hospital Geral, que se implantou no antigo Convento de Santa Clara. Esta instituição de assistência foi dotada dos rendimentos dos sete hospitais e asilos antigos, de todas as igrejas, capelanias, paróquias, mosteiros e confrarias.

João Calvino espelhou-se na obra realiza em Zurique e aplicou em Genebra o mesmo feito. Em 1535, foi fundado o Hospital Geral, destinado a dar assistência aos enfermos, aos pobres, aos órfãos e aos idosos. Durante a terrível peste bubônica que devastou Milão, o amor heroico do cardeal-arcebispo Carlos Borromeu distinguiu-se brilhantemente na coragem que ele manifestou em suas ministrações aos moribundos; mas durante a peste bubônica, que no século 16 atormentou Genebra, Calvino agiu melhor e mais sabiamente, pois não apenas cuidou incessantemente das necessidades espirituais dos doentes, mas ao mesmo tempo introduziu medidas higiênicas até então incomparáveis, pelas quais as ruínas da praga foram interrompidas. Depois, em consideração à penúria de víveres, à pobreza de uma parte da população e à avareza de outra, medidas de ordem econômica foram tomadas imediatamente contra o monopólio e a especulação para colocar os produtos básicos da alimentação ao alcance de todas as pessoas.

O protestantismo de tradição reformada alfabetizou o homem da sua época, dando-lhe acesso a um mínimo de instrução. Libertou-o de uma série de vícios danosos à sua saúde, nocivos à sua capacidade de trabalho, e o conduziu às virtudes de uma vida sóbria. Integrou o homem em uma comunidade, que é também um grupo de ajuda mútua.

Ensinou que o homem deve buscar seu papel social como uma vocação, um chamado de Deus. Entendeu que a atividade econômica e financeira deve ser um direito de todos, sem privilégio ou exclusividade por parte do Estado ou da Igreja.

Reafirmo a posição de que não há nada de novo. Um legado nos foi deixado. Temos de honrar o suor e o sangue que os pastores do passado derramaram. Se facilmente é ignorada a tradição teológica, o que se dirá dos principais fundamentos da fé cristã?

A esquerda política e o liberalismo teológico são parasitas que se alimentam de algo vivo existente sem o mínimo de poder para criar algo do nada. O que falta é quem se vê como ortodoxo e conversador conhecer e dominar bem os recursos da história e da teologia para saber se posicionar e combater a velha heresia que se apresenta em roupagens novas. A compreensão de que a obra de Cristo restaura uma sociedade falida, desorganizada e perdida deve existir na fala, vida e ação de todo bom cristão.

Christopher Marques é bacharel e mestre em Teologia, pós-graduado em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, e autor de “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.

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