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O então presidente do Conselho Editorial do Senado, senador Randolfe Rodrigues, um dos autores da coletânea, durante o lançamento da obra.
O então presidente do Conselho Editorial do Senado, senador Randolfe Rodrigues, um dos autores da coletânea, durante o lançamento da obra.| Foto: Agência Senado

Antes das eleições gerais de 2022, o público começou a ouvir que era preciso formar uma “frente ampla” para derrotar Jair Messias Bolsonaro, ou seja, encontrar uma “Terceira Via” capaz de aglutinar políticos divergentes dentro de um projeto que permitisse ao Brasil “salvar a democracia”.

E se eu contar que, em verdade, esse projeto de derrotar Bolsonaro surgiu em 2018, tão logo os resultados de sua vitória foram anunciados, quiçá no mesmo dia do segundo turno, e que a história da forma como a Esquerda se reorganizou para retomar o poder perdido está devidamente registrada? E o registro não está em nenhum documento obscuro, como uma ata antiga e embolorada do Foro de São Paulo mas, sim, em um livro físico e digital publicado pela Livraria do Senado, financiado com dinheiro público?

100 Vozes pela Democracia: um mosaico de reflexões da sociedade brasileira frente à ascensão da extrema direita reacionária é um desses livros de homenagem bastante comuns no meio acadêmico. O autor deste artigo já participou de alguns desses livros como autor, inclusive em uma obra em homenagem a. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (pois é, amigo patriota, me processe...). Geralmente, o homenageado nessas obras é algum professor ou jurista. No caso, a homenageada pelo livro 100 Vozes foi a própria democracia. Como veremos, podia ter sido a Mãe Terra. Ou Pachamama, entidade espiritual andina, ou Lula, que não faria diferença.

Como o título já diz, 100 personalidades ou (sub)celebridades da política e da Academia Nacional escreveram uma centena de artigos para se congratular por terem salvado a democracia para nós – mortais ignorantes e primitivos –, a qual estava sendo ameaçada por Bolsonaro. Não é difícil localizar os autores entre as inúmeras edições de Diários Oficiais de diversas esferas, ocupando há diversas décadas cargos públicos ou sinecuras, participando de infindáveis conselhos ou até mesmo presidindo entidades de classe ou associações.

Todos os caminhos levavam a Lula. Nenhum dos outros que supostamente com ele concorriam para derrotar Bolsonaro se sentiram especialmente tristes de ter para ele perdido.

O livro já começa errado pelo fato de ter sido editado pelo Senado, com cópias impressas a mancheias com uso do Orçamento da União. Nesse caso, há de se perdoar Castro Alves, pois nem sempre quem semeia livros manda o povo pensar. Bom, paciência, o livro tem Democracia no título. Quem está do lado certo da história tudo pode. Para quem já viu partido de direita ser multado em 22 milhões de reais por ter feito mera petição à Justiça Eleitoral, o que é publicar um livro assim?

Alguns artigos contêm pérolas que serão devidamente comentadas a seguir. Certos elementos pré-textuais do livro, contudo, são mais interessantes que os próprios artigos. Muitos desses textos foram produzidos por ghost-writers (ou alguém acredita que o presidente Lula tenha sequer tempo para escrever um artigo?) e consistem em longas arengas sobre democracia. E democracia. E mais democracia, com aprofundamento mais raso que um pires.

Um dos livros mais citados pelos articulistas é um tal de Como as democracias morrem, dos americanos Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, tão mencionado que dá a impressão que mesmo as verbas do Senado não foram suficientes, a ponto de ser necessário fazer um exemplar amarfanhado do livro circular entre os 100 autores para reduzir custos e permitir um copia-e-cola mais eficiente de trechos do livro. Aparentemente, dois autores escreveram seus artigos em conjunto e os dividiram em dois, uma espécie de ciência-salame do lero-lero democrático, tamanha a similitude dos trechos citados de Ziblatt e Levitsky.

A dedicatória do livro merece citação quase integral:

Dedicamos esta obra a todas as vítimas da pandemia de coronavírus e a seus familiares que, em um momento crítico da economia e da política brasileira, ainda precisaram superar a tragédia de perder um ente querido [...]

Esta obra, além de propor uma reflexão, dedica-se a homenagear todos os brasileiros que sofreram, ao longo desses últimos anos, com o aumento da intolerância, preconceito e misoginia, os quais induziram ao assassinato de mulheres, indígenas, negros e homossexuais; com o tensionamento do confronto ideológico que perseguiu jornalistas, ambientalistas e ativistas; e principalmente com a fome que voltou devido ao encolhimento da ação do Estado e a uma das maiores recessões da história do país.

Se esse livro merece algum ineditismo seria em razão de ser a primeira obra da história que conseguiu receber uma checagem de fatos na própria dedicatória. Se Elon Musk, dono do X, ex-Twitter, tomar conhecimento do livro, com certeza autorizará uma Nota da Comunidade apensada aos exemplares.

Fiquemos apenas em “fome que voltou devido ao encolhimento da ação do Estado e a uma das maiores recessões da história do país”. Bem, jornais insuspeitos de gostar de Bolsonaro, como O Globo, afirmam que a economia sob Bolsonaro cresceu uma média de 1,5% ao ano, sendo 2,9% em 2022. Não custa lembrar que: 1) a pandemia e o “fique em casa” ocorreram no governo Bolsonaro; 2) o aumento do PIB não é recessão, salvo em alguma disciplina de pós em Economia da Fundação Perseu Abramo (a fundação partidária do Partido dos Trabalhadores). Daria para escrever outro artigo (ou uma dissertação de mestrado) só sobre a dicotomia fome x encolhimento da ação do Estado, mas é preciso avançar.

A introdução do livro é preciosa. Ela está a cargo de Fernando Guimarães (tucano histórico que hoje está no Partido Socialista Brasileiro – PSB), organizador do livro e um político até desconhecido do grande público, mas que é uma eminência parda da política brasileira, dotado de imensa capacidade organizacional. É ele quem nos conta:

Quando acordei na manhã do dia 29 de outubro de 2018, tinha em conta que viveríamos, desde então, ao longo dos quatro anos seguintes, um permanente pesadelo: Jair Messias Bolsonaro havia vencido a eleição presidencial e já reiterava suas verborragias de campanha onde explicitava seu desapreço pelos valores democráticos e a sua cultura de ódio pelas minorias.

Como eu já havia dito, a esquerda até gastou a noite do segundo turno das eleições de 2018 para chorar um pouco. Mas no dia seguinte eles já tomavam um café da manhã reforçado, pois sabiam que os meses seriam longos e puxados e havia trabalho a fazer. O Diário Oficial dos próximos quatro anos seria árido.

O que os 100 autores disseram se basta. Parafraseando Abraham Lincoln no cemitério de Gettysburg, Pennsylvania, o que foi dito por eles está além da nossa capacidade de acrescentar ou diminuir.

O escritor Marco Frenette resume bem esse sentimento da esquerda. Ao ver que tinha perdido a eleição de 2018, ela se apalpou, viu que seu corpo estava todo chamuscado e dolorido, mas não morto. A direita brasileira demorou a perceber isso e achou que a vitória de 2018 era uma espécie de “fim da história” do Francis Fukuyama, que nada mais era necessário. Ledo engano.

Em 29 de outubro de 2018 já começava o trabalho de recuperar a Presidência (e as estatais, o BNDES etc.) e Fernando Guimarães revela, sem papas na língua, como isso se deu: “Era então a hora de erguermos a bandeira da democracia, dos direitos humanos, dos princípios e valores assegurados na Constituição e convidarmos a todos para empunhá-la”.

Eu próprio lembro que a grande e primeira bandeira da esquerda derrotada foi invocar ataques a minorias por parte de Bolsonaro e uma suposta redução de direitos. Isso foi muito martelado e não encontrou eco no público, já que ninguém enxergava no presidente Bolsonaro algo mais que um político, por vezes, sincero demais e até desbocado, mas não um carrasco de minorias.

Em verdade, a redução da criminalidade, tendência que vinha desde o governo Temer, salvou a vida de integrantes de minorias. Se menos brasileiros, no geral, foram mortos, isso significa que menos mulheres, negros, índios etc. tiveram suas vidas ceifadas em quatro anos de Bolsonaro. A impressão que dá é que Fernando Guimarães não acredita muito no que ele próprio diz. Democracia é apenas uma bandeira para ele. Como dizia o radical americano Saul Alinsky, a questão nunca é a questão, a questão é sempre o poder.

A democracia de Guimarães é voltar para o pré 29 de outubro, o dia da “Nakba” (do árabe “desastre”) da esquerda brasileira, o dia maldito que faria eles ficarem no “ermo” por quatro longos e secos anos. A esquerda logo passou a ter um saudosismo daquela bela época em que PT era a “esquerda” e o PSDB era a “direita” – as duas opções permitidas para a Presidência. Era preciso restaurar a glória do Antigo Regime.

“O que fazer?”, perguntar-se-ia Vladimir Ilitch Lênin. Guimarães formou, então, um grupo de Zap, com liberdade plena para que todos escrevessem o que quisessem, alegando conversar com políticos de diferentes matizes. Coincidentemente, todos os matizes são de esquerda ou de extrema-esquerda (hora de devolver o favor e a cortesia de tratamento que a direita recebe diuturnamente), todos dos “50 tons de vermelho da política brasileira”, na feliz expressão de Rodrigo Constantino.

Do Zap, os “democratas” (a resistência) passaram aos encontros presenciais e promoveram a criação do “Direitos Já! Fórum pela Democracia”. É de se aplaudir a capacidade de organização da esquerda que, em fevereiro de 2019 (segundo mês do mandato Bolsonaro), já tinha grupo pensando em 2022. Pouco tempo depois, eles já reuniam figuras como Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Aldo Rebelo e José Gregori, de saudosa memória, para avançar na sua frente.

Logo surgia um ato presencial no Teatro Tuca, da PUC-SP, com outras presenças ilustres, como do padre Júlio Lancelotti (sim, aquele...); do então governador do Maranhão, Flavio Dino; da suplente de deputada federal Monica Rosenberg, do Partido Novo (essa cito só para ilustrar o que o seu partido fazia no verão passado...); e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (por vídeo). O grande convidado da noite era o indefectível estadunidense (sic) Noam Chomsky, guru internacional da Esquerda. Cabe um respiro cômico nesse sofrer todo, que é a penosa introdução de Guimarães:

Já na apoteose, diversos artistas, puxados pelo ator Ivam Cabral, tomaram o palco em coro cantando ‘É’, de Gonzaguinha. Enquanto isso, do lado de fora do teatro, estudantes acompanhavam o ato pelo telão,diante de milhares de balões brancos que subiam ao céu, anunciando a formação da Frente Ampla pela Democracia no mais amplo e significativo ato público realizado desde as Diretas Já.” (rectius: Guimarães esqueceu completamente dos atos pelo impeachment de Dilma Rousseff, bem maiores que um mero teatro lotado)

É, de Gonzaguinha, como trilha sonora.... Nada contra, mas a esquerda brasileira ainda habita num ano indefinido entre 1964 e 1985. Não é o ano (1968) que não acabou, de Zuenir Ventura, é o regime (militar) que não acabou. Quanto tempo algo encerrado há quase quatro décadas ainda renderá como fator de mobilização? Quanto leite ainda sai dessa pedra?

Não à toa Antônio Prata disse, certa vez, que o gosto musical do PT e PSDB era bastante parecido. A mesma canção de Gonzaguinha mareja seus olhos vermelhos. Nós é que não percebíamos o teatro das tesouras, bastava ver o que tocava de trilha sonora em suas convenções partidárias. Não era cegueira nossa, era surdez.

A Introdução segue com um longo relato das diversas reuniões do Fórum realizadas durante quatro anos, em cantinas e jantares (ninguém é de ferro...), e de quem ia aderindo ao movimento, como Luciano Huck, Gilberto Gil e o então presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Uma hora até o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e o Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE) já andavam juntos com o Partido Novo (que concedeu mais participantes ao movimento, como Alfredo Fuentes, presidente estadual de São Paulo). Ciência e anticiência juntas. Fogo e água. Côncavo e convexo.

Diz a lenda que o escritor Nobel de Literatura, Anatole France visitou, certa vez, o santuário de Lourdes, na França, e teria visto um local cheio de muletas dos fiéis, e comentou que só tinha visto muletas no local mas nenhuma prótese, minimizando os milagres ocorridos. Eu, de minha parte, também não me impressiono com os milagres de organização de Fernando Guimarães. No fundo, ele reuniu inúmeras variações de esquerda, diversas espécies de estatistas, várias modalidades de gente que vive de dinheiro público, como as viúvas da Viúva do MST, mas não reuniu nenhum amante verdadeiro da liberdade, com todas as suas dores e dificuldades.

É de se conceder algo a Guimarães e a todos de sua intrépida trupe, ou melhor, concedamos duas coisas: primeiro, como bons e devotados apóstolos do poder, eles trabalharam muito, por quatro anos, para voltarem ao poder, se é que do poder um dia eles saíram. Eles estavam apenas sem a Presidência – toda a sociedade civil (risos – é uma invenção da esquerda isso), a academia, os sindicatos e toda forma de coletivo, como o Coletivo Feminista Dandara e o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP – nunca deixou de ser deles. Eles suaram sangue, suor e lágrimas para recuperar a joia da coroa, fica aqui o exemplo para a direita. Segundo, fica um testemunho de que, no fundo, a política brasileira, com pouquíssimas exceções (Bolsonaro e seu entorno), é formada só de esquerda. PT e PSDB são muito Esquerda. PSOL nem se fale. Partido Novo é Esquerda. MBL é... Esquerda.

Prossegue, então, o livro com os 100 artigos propriamente ditos. Como é impossível analisar cada um deles será suficiente destacar algumas falas e autores, encapsulando um pensamento vivo da esquerda brasileira no ano de 2022 (o ano de seu retorno triunfal à Presidência e do fechamento do livro).

O que os 100 autores disseram se basta. Parafraseando Abraham Lincoln no cemitério de Gettysburg, Pennsylvania, o que foi dito por eles está além da nossa capacidade de acrescentar ou diminuir com nossos fracos poderes. Os 100 são mais que os 300 de Esparta e do que os 18 do Forte.

Em obras coletivas, um autor dificilmente se compromete com aquilo que o colega de livro escreve. Mas custa crer que a turma reunida por Fernando Guimarães tenha olhado o que os colegas faziam nas páginas ao lado sem endossar as falas alheias. O autor que puxava para o lado de que Bolsonaro tinha um falso apoio junto aos judeus brasileiros (Daniel Annenberg – que aliás deveria, junto com Floriano Pesaro, fazer um mea culpa por servir Lula, enquanto este e seu entorno desovam antissemitismo desde 7 de outubro de 2023), no fundo estava aplaudindo o cinismo de José Álvaro Moisés ao ousar falar de Venezuela num livro que é material de apoio para Lula e vice-versa. Lula trouxe Maduro ao Brasil numa passada de pano internacional e se encontra com ele aos afagos e abraços, seu Álvaro...

Enfim, cada autor, em conjunto, teve que aplaudir um pacote completo de identitarismo, petismo, estatismo, diatribes contra o combate à corrupção e repetir ad nauseam a mesma arenga contra Bolsonaro. Eu teria um pouquinho de vergonha alheia de ser coautor num livro com artigos escritos por potências intelectuais e sumidades morais do naipe de Gleisi Hoffmann, Érika Kokay, Leonardo Sakamoto e Randolfe Rodrigues. Mas, ei, esse sou eu. Ainda estamos nos últimos momentos de um país livre.

Vamos às frases, imitando a seção “Frases da Semana” desta mesma Gazeta:

“Foi nesta base que Bolsonaro se elegeu. O país nunca contou com um presidente tão ruim. Neofascista, despreparado e grotesco” – Aldo Arantes, membro do Politburo do PCdoB, num momento de elevada argumentação ao estilo Mariliz Pereira Jorge. Faltou o bobo, chato e feio para se referir a Bolsonaro.

“Nos EUA não foi diferente com a eleição de Donald Trump, a primeira representação de alcance internacional de um candidato ‘antissistema’ depois da queda do fascismo na Europa” – Floriano Pesaro, sociólogo, arguto observador da cena política internacional.

“Por fim, a democracia está em risco porque o Brasil continua refém de governos populistas que trabalham há quase duas décadas para minar a credibilidade das instituições democráticas e das regras do jogo”Luiz Felipe D’Ávila, do Partido Novo, linha auxiliar do telecath-22 na campanha vencida por Lula. Se ele afirma que o Brasil está há duas décadas na mão de governos populistas, como é que ele se alia a um populista para supostamente derrubar outro populista? Ou ele achou que o PT ia se unir atrás de sua vigorosa liderança?

“Afinal, os evangélicos nunca gostaram muito de democracia, porque a maioria das igrejas não são democráticas. Vide a Assembleia de Deus, que é presidida há mais de 30 anos pela mesma pessoa. A Assembleia de Madureira, igualmente, vive sob uma dinastia e a Igreja Universal do Reino de Deus é praticamente um reinado de Edir Macedo. O pastor Valdomiro é um ditador, com muitos imitadores, e assim seguem milhares de exemplos”Caio Fábio, pastor evangélico, aproveitou o artigo a que tinha direito para cutucar irmãos de fé, em momento “as uvas estavam verdes”. Se alguém quiser saber mais sobre Caio Fábio sugiro que use seu buscador de internet favorito para procurar seu nome e os termos “Dossiê” e “Cayman”. Aparecerão notícias dos anos 1990. Boa leitura. Ao menos foi bom saber que os tucanos têm capacidade de perdoar e acolher Caio Fábio no ninho.

“Não se espante, caro leitor, se agora recorro a Paulo Guedes, o corifeu desta forma degradada do liberalismo entre nós, que é o neoliberalismo” – Aloysio Nunes, veterano político tucano, mostrando que após passar os oito anos de FHC (1995-2003) sendo chamados de “neoliberais”, os tucanos aprenderam a usar o xingamento para tentar exorcizar adversários políticos. Chumbo trocado com terceiros não dói.

“Chegamos agora ao ano das eleições, que oferece uma nova oportunidade de mudança a todos nós, inclusive àquela elite que vislumbrou vantagens nas mentiras de Bolsonaro, Paulo Guedes e Sergio Moro”Marina Silva, devidamente instalada num ministério de Lula, em um momento em que “a guerra nunca foi contra a Lestásia, sempre foi contra a Eurásia” (1984, George Orwell), esquecendo que um dia ela própria disse o seguinte de Sergio Moro: “Até agora os frutos dados pela Lava Jato foram muito importantes para o Brasil. Eu sei que o juiz Sergio Moro tem muita consciência do que isso significa indo para o governo (Bolsonaro)”.

“Todos nós sabemos o quanto o racismo está presente no cotidiano. Está no sistema que manipula a consciência do policial que executa um jovem negro” –  Frei David, diretor executivo da Educafro Brasil, aproveitando seu texto para avançar a tese do “racismo estrutural”, botando fé que os policiais brasileiros são hipnotizados para matar jovens negros. Aliás, não só matar, mas, sim, “executar”, uma pesada calúnia de David contra os policiais brasileiros, chamados em conjunto de “assassinos racistas”.

“O bolsonarismo nasceu antes de Bolsonaro. Sempre vagou nas entrelinhas do reacionarismo de uma certa pudica centro-direita e, por vezes, mas em caráter excepcional, se apresentava em discursos e manifestações desdenhadas pela grande mídia em virtude de seu caráter burlesco. Era um espírito errante em busca de um corpo” – Fábio Trad, político do PSD, em momento similar àquele em que Lula disse não ser mais um ser humano e, sim, uma ideia. Bolsonaro, no caso, fez um percurso inverso de ideia para corpo. Interessante, ainda, reparar que Trad gosta de coisas impudicas, já que critica as pudicas.

“Por isso as mulheres precisam ocupar esses espaços. Afinal, uma a mais na política é certeza de um machista a menos”Isa Penna, política do PSOL, que simplesmente acredita que todo homem na política, sem exceção, é um machista, implicitamente pregando a criação de uma espécie de assembleia mundial das amazonas que passará a gerir os destinos humanos. Desnecessário dizer que ela trabalhou, muito, para eleger Lula em 2022, não exatamente um modelo de respeito às mulheres. Pela sua lógica, Penna, com certeza, então colocou um machista na Presidência.

“É preciso eleger um governo que reconstrua o equilíbrio das instituições, que respeite a Constituição de 1988, que converse com todas as forças políticas e reconheça o direito à crítica, em vez de estimular seus seguidores à violência física contra adversários”Lula, o principal beneficiário do livro, o Alfa e o Ômega, o Início, o Fim e o Meio das 100 Vozes, que se uniram em coro grego para o aclamar. Na frase, Lula está em um momento de especial cinismo, celebrando a missão dada e cumprida, de eleger a terceira via: ele mesmo.

100 Vozes pela Democracia é apenas o libreto do programa entregue ao distinto público no teatro (das tesouras) para entender o que ele assistirá até 2026 e além.

Pitoresco que seja navegar pelas ideias de esquerda das 100 Vozes, é preciso voltar para uma conclusão. Por mais que se afirme ao longo do livro que o movimento Mais Direitos buscava achar uma alternativa democrática a Bolsonaro, a verdade é que só havia uma alternativa: Lula. Quem afirma o contrário, fora do livro ou em um dos 100 artigos, está mentindo ou é o proverbial “pato” do jogo de pôquer.

Todos os caminhos levavam a Lula. Nenhum dos outros que supostamente com ele concorriam para derrotar Bolsonaro se sentiram especialmente tristes de ter para ele perdido, alguns até assinaram artigos no livro e depois viraram ministros(as) dele, como Simone Tebet. Até candidatos à Presidência e autores de artigos no livro, como Luiz Felipe D’Ávila, do Partido Novo, sabem que jamais foram alternativa, e que trabalhavam para Lula. Está aí João Amoêdo que não me deixa mentir, que é até objeto de agradecimentos no corpo do livro.

Como na imortal lição de dramaturgia de Anton Tchekhov, se uma arma é mostrada num ato de uma peça teatral, ela precisa ser disparada no ato seguinte, caso contrário, ela nem deveria estar no texto.  Lula, o canhão carregado contra o Brasil, só apareceu de novo no cenário político, solto por decisão do STF, para concorrer à Presidência. Não foi solto por razões humanitárias, por gratidão ou pacificação. Foi libertado, com direitos políticos, para vencer, não para apenas concorrer. Todos os outros supostos candidatos em 2022 e alguns personagens coadjuvantes cuja função era tuitar, e cuja carreira artística já tinha se encerrado, como o mencionado João Amoêdo, eram só um sideshow no espetáculo de Lula Terceiro.

100 Vozes pela Democracia é apenas o libreto do programa entregue ao distinto público no teatro (das tesouras) para entender o que ele assistirá até 2026 e além. Vale pela revelação sincera e entusiasmo mal disfarçado de alguns autores de que os donos do poder no Brasil voltaram para o local no qual estiveram nas últimas décadas, com a certeza de que eles nunca mais deixarão um acidente como 2018 acontecer novamente.

Ninguém acorda de manhã e pensa: que belo dia para lutar pela democracia (ou Pachamama ou Lula). Todos somos, no fundo, os padeiros ou açougueiros de Adam Smith, cuidando de nossos interesses. E com os 100 autores de 100 Vozes pela Democracia não é diferente. Cada um revela um especial interesse em seu artigo, não necessariamente democracia. Isso é especialmente válido para o organizador do livro, Fernando Guimarães.

Por mais que eles batam no peito e jurem ter feito todo o trabalho de tirar Bolsonaro do poder para salvar a democracia, é fácil notar que eles seguem um princípio próximo ao lema do estúdio de Hollywood MGM, Ars Gratia Artis (sim, imagine o leão rugindo!), mas que se configura como Potestas pro Potestate, o poder pelo poder.

Como disseram Jung Chang e Jon Halliday ao final de sua biografia Mao (Companhia das Letras, edição de 2012), o grande líder de centenas de milhões de chineses e além – Mao Tsé-Tung –, nos seus instantes finais de vida, muito provavelmente pensava apenas nele mesmo e no seu poder, e em nada mais. No fundo, as 100 vozes pela democracia pensaram apenas em seus holerites e nos nacos do orçamento federal ao qual teriam novamente acesso ao terem voado em formação para colocar Lula de volta no poder. Alguns sonhavam com suas carreiras acadêmicas, com suas cátedras ou com a próxima eleição.

Custa crer que o Senado Federal, casa que abriga diversas correntes políticas, tenha concordado em editar um livro que desde o seu subtítulo já trata a direita como “extrema-direita”, e faça pouco caso do fundamento da República Federativa do Brasil – o pluralismo político, previsto no artigo 1º da Constituição Federal.

P/S – Um antigo colega meu é um dos 100 autores de artigos do 100 Vozes. Certa vez, ele me chamou entusiasmado para ver Sergio Moro em pessoa, o qual participaria de uma banca na universidade. Era o começo da Lava Jato. Moro crescia e despertava curiosidade. Fomos lá e juntos vimos Moro. Vida seguiu. Certo dia, percebi que Moro não causava mais o mesmo frisson no colega. Muito pelo contrário. Semelhante fenômeno ocorreu com muita gente. Aí percebi que Moro tinha perdido sua utilidade. Ele era uma esperança de derrubar o PT e fazer o pêndulo voltar aos tucanos. Mas veio Bolsonaro e mostrou que John Lennon estava certo e que vida é o que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos. A nova missão de Moro, então, era ser alvo daqueles que se uniram pelo poder em 2022. Os tucanos perceberam que só voltariam ao poder nas asas de Lula. A Lava Jato foi obliterada. Deltan Dallagnol perdeu sua vaga de deputado. E assim foi.

Um dia reencontro este colega nas páginas do 100 Vozes. E escuto o nome dele em outras rodas do poder. E ao falar de Israel versus Palestina notei que ele segue aquela perigosa linha “depende do contexto”, de Antônio Guterres e das reitoras Ivy League. Vejo-o tripudiando de gente atingida por atos do Supremo na pueril linha “viva Xandão” (palavras dele – eu chamo meu ex-professor Alexandre de Moraes pelo nome) e “a democracia foi salva”. Tenho até medo de descobrir o que ele pensa sobre outros assuntos. Ou melhor: medo não, eu simplesmente não tenho mais interesse em saber. E este colega se tornou apenas alguém que eu acreditava conhecer...

Luiz Augusto Módolo de Paula é advogado, bacharel, doutor e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP e jornalista. É autor de “A Saga de Theodore Roosevelt” (Editora Lisbon International Press, 2020), “Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda” (Appris, 2014), “Resolução de Conflitos em Direito Internacional Público e a Questão Iugoslava” (Arraes, 2017), “O Jugo da Histeria no Brasil Ocupado” (2021) e de “Teddy Roosevelt para Crianças” (2022) – os dois últimos editados pela Arcádia Educação e Comércio Ltda e escritos em parceria com Lílian Cristina Schreiner Módolo. Instagram: @luizaugustomodolo. X(Twitter): @LAModolo.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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