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Todos nós podemos ser vítimas de uma ordem judicial des­­cumprida. Cada um de nós pode perecer ou ver al­­guém querido sem vida ou sem saúde por causa da inob­­ser­­vância de um comando judicial

Chamou-me a atenção a matéria de capa da revista Época, de 13 de setembro de 2010: "a história absurda do menino que morreu aos 14 anos porque as autoridades médicas se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho para ajudá-lo a respirar". Dessas palavras, senti-me impressionado pela expressão "mesmo com ordem da Justiça".

Lendo a cronologia dos fatos, a reportagem dá conta de que, nos primeiros dias de fevereiro deste ano, a Justiça Federal do Rio de Janeiro concedeu liminar ordenando que a União, o estado e o município fornecessem ao adolescente equipamento de oxigenoterapia domiciliar. A ordem não foi cumprida por nenhum dos três réus. Em 13 de maio, nova ordem é emitida, endereçada especificamente para o município do Rio de Janeiro, para cumprimento em 48 horas, sob ameaça de sequestro de verbas públicas para o aluguel do equipamento. Mesmo diante da ameaça, a ordem continua a ser descumprida. Em 9 de agosto, o menino falece.

Entre a emissão da ordem judicial e a morte de Fábio transcorreram mais de seis meses. Não houve recurso de qualquer das partes contra a decisão liminar, pelo que ela estava em vigor durante todo esse tempo.

Esse triste fato demonstra, mais uma vez, que o nosso sistema processual, e sua aplicação jurisprudencial, continua carente e precário no que se refere aos meios coercitivos, que garantam, de pronto, o cumprimento das ordens judiciais, especialmente estas que envolvem a proteção de direitos fundamentais.

Uma ordem se diferencia da recomendação pelo seu caráter coercitivo. Infelizmente, no estágio cultural em que vivemos, não basta que a ordem provenha do órgão constitucionalmente legitimado para emiti-la (Poder Judiciário). Não basta ordenar. É preciso coagir, intimidar. Sem ameaça, a ordem não se cumpre ou se cumpre com atraso, na medida da boa vontade do ordenado. E o atraso pode significar a morte.

O fato desvela, igualmente, o mito de que uma ordem do Estado (juiz) será naturalmente cumprida se endereçada a outra parcela do mesmo Estado (administração). A experiência demonstra que essa proposição não é verdadeira. Mesmo contra o Estado, a ordem judicial deve estar impregnada de meios coercitivos. Os fatos cotidianamente revelados impedem que continuemos acreditando no compromisso dos diversos setores da administração em cumprir com exatidão os provimentos judiciais. Se não houver meio coativo acoplado à ordem, corremos o risco do descumprimento e da morte.

Mais ainda, o fato impõe uma necessária revisão sobre a maneira de coagir os órgãos públicos a cumprirem ordens. Quem se intimida e teme, quem se abala psicologicamente com uma ameaça judicial não é o órgão público, ente abstrato, mas o agente público responsável por ele, que é pessoa humana. Por isso, para intimidar e coagir, os meios coercitivos devem ser dirigidos contra os agentes públicos responsáveis pelo cumprimento da ordem. Chega de responsabilizar os cofres públicos pela irresponsabilidade de seus agentes!

A denúncia trazida pela revista é oportuna no momento em que se discute o projeto de um novo Código de Processo Civil. Todos nós podemos ser vítimas de uma ordem judicial descumprida. Cada um de nós pode perecer ou ver alguém querido sem vida ou sem saúde por causa da inobservância de um comando judicial. A cada ordem em vigor descumprida, perde-se a vida e a democracia.

Por essas razões, é importante conhecer como o novo CPC tratará a matéria. Se resistirá às pressões para que o Judiciário continue impotente. Se capacitará os juízes a fortalecerem suas ordens, de maneira que os réus, inclusive União, estados e municípios, e seus diligentes procuradores, jamais possam pensar duas vezes antes de descumprir uma ordem judicial. Se realmente será um instrumento para impedir que a burocracia se sobreponha à vida.

Para o menino Fábio, a ordem da justiça não bastou, porque não basta um pedaço de papel que ordene. Era preciso que a espada de Themis pendesse sobre a cabeça de todos aqueles que deveriam garantir o ar para a criança.

Vicente de Paula Ataíde Junior, juiz federal em Curitiba, é membro da Comissão de Reformas Processuais Civis da Associação dos Juízes Federais (Ajufe). E-mail:vpa@jfpr.jus.br

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