• Carregando...

O complemento argumentativo para decretar a quebra do monopólio desse modelo familiar foi vinculá-lo a uma motivação religiosa

Parabenizo a sagacidade estratégica de todos os que lutaram para que fosse aplicado à união homoafetiva o regime jurídico da união estável entre homem e mulher. Parabenizo pela sua eficiência e constância. Não desistiram, mesmo quando parecia impossível. Aprenderam com as derrotas, e com o tempo souberam escolher uma estratégia inteligente; mais, uma estratégia vencedora, em todos os sentidos.

No âmbito da comunicação, desenvolveram um discurso poderoso e atraente. Souberam trabalhar o imaginário popular. Adiantaram-se e definiram o enquadramento que o tema receberia na imprensa. Aqui, coube à expressão "preconceito" uma função primordial. Ela passaria a resumir a atitude da sociedade em relação aos gays e às lésbicas. Não haveria possibilidade para uma terceira via. Apoio às suas pretensões ou manifestação de preconceito: de que lado você quer estar? Ainda que informada por uma estética diversa, essa disjuntiva não deixa de ser uma nova versão do "ame-o ou deixe-o" do regime militar.

Foi uma estratégia eficiente porque soube converter as derrotas em vitórias. Por exemplo, o Poder Legislativo, mesmo diante de tantos projetos de lei para o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, sempre rejeitou a criação de uma legislação específica. Esse silêncio legislativo poderia ser entendido de diversas maneiras, e de qualquer forma representava um ponto frágil para a causa gay. Transmitia a impressão de que a sua proposta não passava pelo cadinho democrático primário. Apesar de tanto empenho por parte de alguns políticos (Martha Suplicy que o diga), as duas Casas legislativas não queriam que esses projetos fossem adiante.

No entanto, conseguiu-se atribuir um único sentido a essa indefinição. Sem margem de erro, seria causado pelo retrocesso da sociedade brasileira, pelo seu conservadorismo, pela confusão ainda presente entre política e religião.

Com esse método, virou o jogo. Atribuía-se à omissão legislativa uma intencionalidade unívoca (a desconsideração pelos homossexuais) e o apito encerrava a partida. A partir de agora, quem pretendesse dar outra interpretação a essa "atuação" legislativa manifestaria evidente preconceito, pois estaria tentando manipular os fatos para manter uma situação injusta.

Também há de se reconhecer que estavam atentos aos detalhes. Até as palavras foram escolhidas com enorme sensibilidade. Trocou-se o termo "uniões homossexuais" por "uniões homoafetivas". Talvez o primeiro remetesse muito ao corpo, à biologia, à ideia de natureza; já o segundo é mais fluido, abrangente, leve. Aqui, é arriscado fazer interpretações, mas o fato é que conseguiram estabelecer um novo léxico.

Mas a sua principal conquista ocorreu no direito de família. Não foi um jogo rápido, começou décadas atrás, mas pode ser resumido em dois lances: atribuir um tom negativo ao conceito de família e, como consequência, pleitear – como uma questão de justiça e de sensibilidade humana – a sua ampliação. Aquela família em que a maioria de nós nasceu e cresceu, com um pai e uma mãe, aos quais temos uma imensa gratidão e carinho (isso não significa em nenhuma hipótese um juízo de valor em relação às pessoas que não querem uma família assim), essa família passou a ser tratada pelo novo direito de família como uma entidade "patriarcal e patrimonialista", onde imperaria uma profunda desigualdade.

O complemento argumentativo para decretar a quebra do monopólio desse modelo familiar foi vinculá-lo a uma motivação religiosa. Aí, transformava-se num jogo café com leite: um Estado laico deve operar no plano das razões públicas; postulados religiosos não têm carta de cidadania. Nesse cenário, impunha-se, quase como uma decorrência lógica, abrir o conceito de família. O singular seria estreito, mais plural (nos dois sentidos) seria falar em famílias.

Nesse contexto cultural, entende-se a decisão do STF. A surpresa ficou por conta da unanimidade, quando sempre se comentou que era um tema muito "polêmico". Não é fácil unir Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, nem José Sarney (que desde a presidência do Senado apoiou a causa) e o Grupo Arco-Íris.

Num mundo cada vez mais indeciso, fluido e incerto, a causa homoafetiva soube ir na contra-corrente, apresentando uma certeza. Parabéns pelo sucesso. Aos que, como eu, não se sentiram tão confortáveis com tamanha unanimidade, sugiro ler a íntegra do voto do ministro Lewandowski, disponível na página da internet do STF.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com). E-mail: difranco@iics.org.br

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]