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O que se sabe é que 1666 foi um ano de controvérsias. O Padre Vieira inspirado no sapateiro Bandarra, por sua vez inebriado pelas profecias de Daniel, achava que o número 666 marcava o Apocalipse e que, logo em seguida, viria a Redenção. Ferrou-se: a devoção ao profetismo açulou a Santa Inquisição.

Isaac Newton antes de relacionar a queda das maçãs com a lei da gravidade também fascinou-se com a numeralogia e seu conterrâneo, John Dreyden, foi na onda com o poema "Annus Mirabilis, 1666". Preferiu o pensamento positivo e concluiu que o terrível incêndio que naquele ano quase destruiu Londres poderia ter sido muito pior não fosse o providencial e milagroso aguaceiro que apagou as chamas. Seus detratores, por vingança, contrapuseram o "Annus Horribilis" e deste confronto entre horror e milagre nasceu uma dialética mística que persiste até hoje.

Cada Annus Mirabilis pode ser visto, revisto ou previsto como Annus Horribilis. Tudo depende do observador: se as cuecas recheadas de dólares são de companheiros, trata-se de verdadeiro milagre – poderia ser muito pior. Mas para as almas menos militantes a coisa pode ser considerada como calamitosa e humilhante. O fato é o mesmo, diferente é a percepção.

A bola de cristal que costumamos consultar nesta época do ano pode ser turvada ou tornada radiante graças a um fator que poderia ser denominado "índice de toxicidade". Se determinada situação ou fato acontecido no ano que se encerra não incomodou nem deixou marcas, a perspectiva para o próximo será benevolente, rósea. Se, ao contrário, perturbou, os presságios para os próximos 365 dias serão terríveis.

Exemplo recente: alguns jornais noticiaram na quinta-feira, sem qualquer destaque, que o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) relator da CPI dos Correios – uma das mais agradáveis surpresas nesta temporada de tremendas decepções humanas e políticas – lembrou-se que precisava cuidar das suas emendas no Orçamento da União. Deixou de lado as investigações sobre o "mensalão" e as fontes do "valerioduto" que conduz com tanta diligência, cruzou a Praça dos Três Poderes e foi ao Palácio do Planalto atrás de um padrinho capaz de garantir-lhe os R$ 3,5 milhões que cabe a cada parlamentar para investimentos nos respectivos currais eleitorais.

Só conseguiu ser recebido por um funcionário do terceiro escalão. É evidente que o mesmo governo que indicou Osmar Serraglio para a relatoria da mais importante CPI das últimas décadas não está satisfeito com o seu desempenho rigoroso e imparcial. E faz questão de demonstrá-lo.

Nenhuma novidade. Surpreendente é a necessidade de um parlamentar que conduz com tanta competência as investigações sobre o maior escândalo parlamentar de todos os tempos ser obrigado a percorrer a humilhante via-crucis para garantir sua sobrevivência política e os votos para o próximo mandato.

Se a CPI dos Correios, como tudo indica, encontrar as chaves da bandalheira, o deputado Osmar Serraglio não precisaria de nenhuma verba para a creche, escola, estrada vicinal, quadra esportiva ou entidade filantrópica no seu reduto. Mesmo que os culpados não fossem punidos este parlamentar seria não apenas facilmente reeleito como poderia ser levado ao Senado ou até mesmo ao governo do estado. Cumpriu com o seu dever moral e cívico.

Isso numa democracia plena, numa república decente e numa sociedade capaz de valorizar os atributos pessoais dos representantes do povo. Não é o caso do Brasil. Se Osmar Serraglio não cumprir estritamente sua parte no jogo que nivela o baixo e o alto clero, pode condenar-se ao ostracismo por melhor que seja o seu desempenho na CPI.

Um incidente como este pode servir de referência para os prognósticos relativos a 2006. Se a aberração não incomoda e vai para a vala comum da insignificância e da banalização, estamos condenados a imaginar que vivemos no melhor dos mundos, aptos a ganhar da divina providência os bons augúrios para os próximos 12 meses. Merecidos: não fazemos jus a coisa melhor.

Mas se o episódio humilha e fere o nosso senso de justiça seremos premiados com o vaticínio de "Annus Horribilis, 2006". E, junto como ele, a indispensável compensação: mudança.

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