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As reações diante do impeachment pela metade de Dilma Rousseff mostraram um elemento pernicioso da nossa cultura: se um dado evento não se realiza da forma como gostaríamos, todo o resto é desgraça e caos. Somos incapazes de extrair do fracasso as devidas lições e enxergar as oportunidades ocultas no meio do turbilhão de salitre e breu.

Agimos e reagimos dessa maneira em várias dimensões da vida em sociedade. A começar pelos esportes. Se a seleção de futebol não ganha uma competição na final, tudo o que foi feito até ali de nada vale. Se um lutador do UFC perde a disputa pelo cinturão, todas as vitórias anteriores perdem a importância. Na política é parecido, mas pior. Se o desfecho na votação do Senado na semana passada não foi o esperado, a conclusão é uma só: o Brasil não tem jeito e a solução é fugir do país.

Reduzimos a nós mesmos e o país a tudo o que temos de mais baixo e podre

No livro Brasil: Uma biografia, as autoras citam a expressão “bovarismo” utilizada por Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil para qualificar a “mania nacional de procurar pelo milagre do dia, pelo imprevisto salvador”. A expressão foi tomada do sobrenome da personagem que batiza o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert, para evidenciar o nosso estado psicológico caracterizado pela insatisfação crônica de não sermos quem gostaríamos de ser produzida pelo “contraste entre ilusões e aspirações, e, sobretudo, pela contínua desproporção diante da realidade”. Esse drama individual produz um problema comunitário. Resultado: o nosso senso comum é desenvolvido com base em certa idealização permanente da vida concreta e a eterna espera de que algo “inesperado altere a danada da realidade”.

Para ampliar aquilo que Gilberto Freyre chamou de “equilíbrio dos antagonismos” em Casa Grande & Senzala e Paulo Mercadante batizou de “conciliação de ambiguidades” em A Consciência Conservadora no Brasil, ao mesmo tempo em que idealizamos a realidade e torcemos pelo advento de soluções mágicas, nutrimos um aguçado complexo de inferioridade que nos faz enxergar quase somente os aspectos negativos dos eventos pessoais, esportivos e políticos. Queremos ser os melhores dentre os piores numa competição bizarra que nós mesmos criamos e da qual não fazemos esforço para escapar.

Ainda que esse “mecanismo muito singular de evasão coletiva” seja a recusa “do país real e a imaginação” de “um Brasil diferente do que é”, como apontam as autoras de Brasil: Uma biografia, o bovarismo também se manifesta na nossa incapacidade de vermos além dos nossos vícios e vicissitudes, das nossas falhas e fracassos, dos nossos dramas e tragédias. Reduzimos a nós mesmos e o país a tudo o que temos de mais baixo e podre, mesmo quando o fazemos apontando o dedo para um terceiro com a finalidade de nos excluirmos do problema e de nos eximirmos da responsabilidade que temos. O “brasileiro”, afinal, é sempre o outro – e eu, que sou melhor, não tenho nada com isso.

Qualquer pessoa sensata viu como anticonstitucional a votação separada que decidiu pela preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff. E é óbvio que o golpe conduzido por Renan Calheiros deve ser questionado no Supremo Tribunal Federal. O grande problema foi a forma apocalíptica como muitos reagiram diante do impeachment pela metade. Foram incapazes de perceber alguns pontos que considero positivos sem negar os negativos: 1) ele prejudicou a falaciosa narrativa de golpe e de vitimização construída pelos petistas; 2) ele derrubou a eventual impressão de que o impeachment resolveria os graves problemas políticos; 3) ele alertou a sociedade para a necessidade de se manter ativa e atuante mesmo depois do afastamento de Dilma, pois, como escrevi aqui na semana passada, o PT não está morto; 4) expôs ao país o que a política é e não aquilo que gostaríamos que fosse, algo que serve para nos deixar menos inocentes, mais maduros politicamente e mais céticos em relação ao governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) e ao jogo político; 5) novamente, mostrou que o presidencialismo republicano é cheio de falhas insanáveis e historicamente repleto de golpes verdadeiros – a começar pelo primeiro grande golpe, aquele que derrubou a nossa monarquia em 1889.

Nossos infortúnios são mais profundos e mais complexos do que as questões políticas. Não resolveremos a política sem antes reconhecermos as nossas virtudes e solucionarmos as nossas misérias.

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