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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Os algarismos intitulam a opera magna de George Orwell, na qual retrata o mal abissal do totalitarismo que em 1984 teria dominado o mundo e até a palavra liberdade desapareceria, substituída pela novilíngua modeladora do pensamento servil que alcançava a paz interior ao atingir a máxima obediência ao Big Brother.

O inferno ficcional de Orwell, imaginado em 1948 a partir do inferno do socialismo real, não se concretizou em escala planetária e, como sói acontecer com os impérios construídos sobre projetos que desconsideram a condição humana, a solidez desmancha no ar e, em 1984, a rocha soviética expunha suas fissuras na guerra no Afeganistão e, pouco depois, todo o rochedo se desfez como castelo de areia. Hoje, parece que nunca existiu. O poeta Horácio já dizia que se pode expulsar a natureza, mas ela volta e passa vitoriosa sobre o tolo desprezo.

Na data emblemática do sombrio vaticínio orwelliano, Curitiba foi à praça logo nas primícias do ano e protagonizou espetáculo luminoso de democracia reunindo 50 mil pessoas para apoiar idéias de liberdade, pluralidade, participação. O primeiro comício das Diretas foi mambembe, artesanal, sem a percepção de que seria o estopim da maior movimentação popular da história. A inocência é aliada poderosa das grandes teses. As pessoas sentem a boa fé e contribuem para o sucesso.

Multidões de mais de um milhão de pessoas se reuniram em São Paulo e Rio de Janeiro para dizer que desejavam votar para presidente. Brasil a dentro, praças receberam a população inteira de cidades pequenas. A distância política entre o sertão e as capitais desapareceu. Os grotões, as veredas, se apresentaram para a ação política. No Paraná, foram mais de 40 comícios (des)organizados pela frente ampla que se reunia na sede antiga da OAB. Sem recursos à mão, mas uma grande ideia na cabeça, se fez história.

Há registro de manifestação pública pelas Diretas na cidade de Abreu e Lima, região metropolitana de Recife, em 1983. Todavia, a Praça Osório em Curitiba pode ser considerada como marco zero da democracia brasileira, pelo pioneirismo e magnitude do comício que assinala essa fase do processo de maturação política que, curiosamente, têm os anos de final quatro como marco: 1964, o golpe civil/militar; 1974, a vitória eleitoral do MDB que deslegitimou a luta armada à direita e à esquerda; 1984, a campanha da Diretas; e 1994, o ano do Plano Real. Em 30 anos, o país superou a puerilidade de republiqueta de banana para iniciar a vida adulta.

A energia política gerada pela mobilização popular foi gerida de modo civilizado, sem que caudilhos se apropriassem dessa força para rupturas institucionais. A multidão viu o Congresso Nacional rejeitar a Emenda Constitucional Dante de Oliveira e a sucessão presidencial em 1985 foi decidida em eleição indireta. Nenhum quebra-quebra, apenas a certeza de que a partir da voz do povo, o país havia crescido e, se a multidão foi pacífica, não seria legítimo às elites o uso da violência.

A alegria tranquila daqueles comícios soa nostálgica diante das cenas de vandalismo que murcharam as manifestações de junho de 2013. A inocência de 1984 faz falta.

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