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Entre 1918 e 19 uma pandemia de gripe matou cerca de 30 milhões de pessoas mundo a fora; dentre as vítimas, Rodrigues Alves, presidente eleito dos Estados Unidos do Brasil. Não havia aviões intercontinentais e a gripe viajou de navio, lentamente. Ainda assim, chegou aos grotões do Brasil e fez uma centena de vítimas até em Ponta Grossa, então uma cidade pequena nos Campos Gerais. Calcula-se, houve 300 mil mortos no Brasil. À época não se conhecia a existência dos vírus, entes muito menores que as bactérias; a medicina e o curandeirismo partilharam a ignorância ao preceituar pinga, limão e mel como remédio, para ao fim, nos atestados de óbito, anotar-se que a causa mortis era urucubaca.

A globalização das pestes é antiga, compôs a definição política do mundo. Colombo trouxe a varíola para a América e dizimou populações inteiras, sem brandir a espada. No século 18, marinheiros europeus espalharam a sífilis pelas ilhas do Pacífico, extinguindo o paraíso dos contatos sexuais inocentes e livres dos polinésios. A despecaminização ocidental do sexo nos anos 60, gerada pela pílula anticoncepcional, abriu espaço para a célere propagação da aids. Com isso tudo, os microrganismos agressivos e os anticorpos são, nos tempos modernos, democraticamente distribuídos. As doenças contagiosas deixaram de ser vantagem para uns e prejuízo para outros. De certa forma, estamos em situação mais igualitária diante das rudezas naturais.

A peste contagiosa impele à realização de atividade cooperativa. Nessas situações de calamidade se os pobres não têm saúde, os ricos também não. Todos ficam extremamente susceptíveis às agruras do viver. A rotina competitiva, que leva à febril disputa do espaço econômico, político e cultural, é substituída pela sensação de que ainda não somos superhumanos, apesar da capacidade de modificar a natureza com as habilidades que o conhecimento científico propiciou. Bombeiros e incendiários se vêem lado a lado contra um inimigo que nenhum deles pode vencer sozinho. Competindo, todos perdem. É por causa desse substrato emocional/racional que a Organização Mundial da Saúde é tão forte. Não se age por caridade desinteressada, mas pela expectativa de reciprocidade. Passado o perigo, as coisas voltam à normalidade e a competição e cooperação retomam seus campos habituais.

A peste bubônica que matou uns 75 milhões de europeus no período medieval trouxe tristeza para os sobreviventes que prantearam as perdas afetivas. Alguém se lembra disso hoje? A memória do sofrimento se apaga de uma geração para outra porque não há culpados. Não há de quem sentir ódio e manter acesa a chama da vingança entre descendentes das vítimas. O tom de fim de mundo nas vozes e letras que comunicam a existência da gripe mexicana dá a impressão de beira do abismo. Pessoas correm às farmácias para comprar máscaras e transitam pelas aglomerações parecendo cães de focinheira passeando no parque. Similarmente à recente gripe aviária e a tantas outras, a gripe mexicana será esquecida e o alarido em torno dela não fará eco além da próxima esquina do tempo. A vida é frágil e, talvez por isso mesmo, muito persistente, sempre encontra um modo de seguir adiante.

Diga-se, não é preciso ter medo de nominá-la de "mexicana". Não há demérito; apenas referência ao ponto de partida da peste, sem contaminar o respeito aos mexicanos. Nessa medida, a brazilian waxing, depilação da virilha à brasileira seria afrontosa a nossa honorabilidade. Na verdade, uma das discussões de saúde pública nos Estados Unidos antes de a gripe tomar o espaço nos jornais era mais divertida: proibir ou permitir a radical depilação para que as americanas usassem biquínis brasileiros. A globalização da ginga maliciosa, contrapartida prazerosa da aldeia global, não ensejará um romance à Camus, mas faz o mundo mais alegre.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP

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