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A epopeia dos mineiros chilenos já está se perdendo na memória diante da avalanche de outros acontecimentos; as belas cenas de solidariedade, compaixão, quase hegemônicas no noticiário, estão sendo substituídas por notinhas sobre desavenças entre os 33 do Chile (alguma ligação com os 300 de Esparta?), crises de choro, preços para entrevistas, empregos públicos. A morte em batalha poupou os espartanos do retorno ao enfado das angústias pequenas que trazem as pessoas de volta à realidade. Os chilenos, todos, ficaram presos naquele buraco por 69 dias e a vitória não os levou ao paraíso. A rotina volta a expor a humanidade de quem, sob intensa pressão, agiu como super-homem suportando o claustro nas beiras do inferno ou atuando para garantir a salvação. A Fênix não renasce redimida dos pecados.

Sei que o tema central da atenção dos leitores hoje é o resultado da eleição de ontem. As idiossincrasias da pessoa que dirigirá o Brasil no quadriênio são relevantes, especialmente porque as instituições são fracas e o presidente é quase monarca, não apenas procurador do povo para cuidar da execução das políticas públicas. Ciente desse foco quero fugir dele para entrar no reino de Hades, nas profundezas onde trabalham há milênios pessoas que garantem os minérios necessários à civilização. Na verdade, desde que a Idade da Pedra foi sucedida pela do Bronze, homens bravios consumiram saúde, vida, nas entranhas da Terra. Passam reis, rainhas (algumas mais para tainhas), presidentes, presidentas, tiranos em geral, e os mineradores seguem na faina penosa, extraindo pedras e metais abundantes ou raros.

Corridas do ouro marcaram a colonização das Américas e a evisceração da África; silvícolas pilotando caminhonetes caríssimas à custa de diamantes de sangue na amazônia ocidental, formigueiro humano à cata do ouro no que foi Serra Pelada e hoje é cratera desnuda, chaga onde havia floresta. Riqueza lotérica, aleatória, para sair do buraco e gastar desbragadamente na metrópole. O ouro preto, a diamantina, as turmalinas, espalharam os portugueses pelo sertão e os colares e as coroas além mar se encheram de brilhos vindos das terras distantes, onde o Eldorado permanecia lenda.

Garimpeiros à flor da terra, em aventuras nômades, desorganizadas, brutalizantes, como gafanhotos destruindo e se deslocando até a próxima predação; protótipos do homem livre, caçador-coletor dos livros de antropologia. Mineiros no ventre da terra, formigas sedentárias, operando metodicamente, sem aventura; protótipos do homo fabris, trabalhador-escravo. Tese e antítese, claustro e agorafobia. Sofrimentos diferentes, pobreza semelhante desses homens que parecem feitos de barro, cabeças fracas, músculos fortes para extrair dezesseis toneladas de carvão por dia e ao final do mês dever a alma no armazém da mineradora. Anônimos morrendo aos montes nas minas socialistas da China, em condições mais precárias que as de Chico Rei nas encostas de Ouro Preto.

Enquanto o braço se estende para apanhar a caixa de leite sobre a prateleira metálica da geladeira, a mente faz a viagem regressiva até a pessoa que perfurou uma rocha a quinhentos metros de fundura para abrir nova trilha em busca do ferro. O martelete da furadeira vibrava as paredes escuras em volta e o pensamento que voou na mente daquele homem me alcança: será que hoje é o meu dia? Se foi, não sei. Talvez o mineiro que visualizei tenha encerrado o expediente e, divertido-se à larga no bar mal afamado do bairro, nem tenha se dado conta de alguém distante que captou a sensação de medo que a valentia esconde.

Quem trabalha no inferno precisa acreditar na benção de Deus.

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