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Lusos marcados por forte lirismo, quando a Revolução dos Cravos se aproxima dos 40 anos, constringem o peito que se enche de nostalgia lacerante como um fado. Salazar estagnou o país no tempo. Hibernação, retirada de campo, coma político. Desenhado nos mapas; na real era um vão vazio, tristeza silenciosa, orgulhosamente só. Ausentava-se do continente, lugar distante, sentindo-se ilha no arquipélago ibérico do fascismo. Ideologia fóssil na Europa; modus vivendi num lugar invisível para o mundo. Antanho Portugal descobriu o mundo. Naquelas décadas tristes, se cobriu para não ver o mundo.

Da Torre de Belém o olhar ia ao horizonte: de nós queriam soldados em África; dentro de nós queríamos a América. Estar era sina e, para dela escapar, os sonhos iam além da grand’água, fazendo o coração bater ligeiro para dar certeza de que a vida ainda pulsava apesar do tédio, mesmice, marasmo. A folhinha de 1930 pende na parede caiada da casinha de oração de irmã Lúcia. Prescinde-se do rito anual de troca de calendários. Tudo é sempre igual. 1970 era 1930.

As pedras no Chiado movem-se levemente quando pisadas, como fazem há tempos. Polidas pelas solas, testemunharam agitação febril e pasmaceira laxa; viram o desespero no terremoto quando os sobreviventes corriam ladeira acima e os tombos na correria ladeira abaixo de quem fugia de Napoleão. Os não embarcados carpiram Portugal outra vez por falta dele, o Rei. Antes sumido em batalha; agora, fugido dela. Ficaram a ver navios as senhoras de negro. Curvadas sob o peso da melancolia, resfolegam nos aclives, encurtam passo nos declives escorregadios. Seus buços estão sempre lá, como se séculos não houvesse.

O tempo transita sem passar. A Europa se move, se aproxima e fica mais distante de nós. Jocosamente dizem que a Europa é ali, depois dos Pirineus. Nós cá em perigos e guerras esforçados entre gente remota para manter territórios além-mar. Na Índia, os perdemos de modo eunuco. Em viril desespero, mais do que prometia a força humana, afundamos o coturno na África para não nos sentirmos menores, depois que a Terra fomos dilatando. Dores do perecimento do império colonial, aliviadas pela ilusão de que o Brasil cumprirá seu ideal: se tornar imenso Portugal!

Eis que uma noite as rádios tocam as músicas proibidas e na Vila Morena as pessoas se agitam, percebem que alguma coisa está a acontecer; a borboleta deixará a crisálida. Quando o povo, que mais ordena, vai à rua e vê o tanque de guerra esperar o sinal de trânsito abrir, sente que Portugal se abriu aos portugueses e ao mundo. Portugal não se esqueceu de quem tanto o amou. Abril, a primavera havia chegado e o temor da sentença que se anunciava bruta se dissipou na execução com tensa brandura. A primeira das "revoluções de veludo" que cativaram o coração das pessoas a lutar sem sangue para derrubar as tiranias.

Quando os relógios recomeçaram a andar em Portugal, fizeram o tempo também mudar no Brasil: a política se intensificou – cedant arma togae – tomando o espaço das armas e outra ditadura ruiu sem fratricídio. Daqui sorrimos porque, de certa forma, o Brasil é Portugal.

Na companhia de Camões e Chico Buarque, passeio pela última flor do Lácio.

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