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Faz parte das necessidades básicas de qualquer indivíduo encontrar explicação e, principalmente, justificativa para as condutas das pessoas e dos povos. Quando um animal devora outro para se alimentar está explicado o motivo e não é necessário discutir justiça ou injustiça: as coisas são assim por natureza. Na verdade, existe a esperança de que a cadeia alimentar dos animais silvestres continue funcionando, por mais sanguinolenta que seja. Contudo, quando um humano mata outro surge o imperativo de avaliar o fato não como um acontecimento natural, mas como um evento moral.

As guerras, por mais explicação política que tenham, não ficam imunes ao exame moral. No entanto, as avaliações sobre moralidade são difíceis de fazer e o resultado é sempre imperfeito. Ainda que cientes das imperfeições dos juízos morais, um impulso profundo, irresistível, impele as pessoas a fazer julgamentos. Seja diante de uma descortesia ou de uma brutalidade, julga-se. A guerra aberta em Gaza agride o senso moral e incita a formação de juízos sobre as causas, os meios e as finalidades. Porém, é muito difícil chegar a um veredicto quando nenhum dos contendores têm plena razão! É verdade, essa afirmação é um julgamento e as pessoas julgadas podem dizer que houve parcialidade, erro, ignorância. Assim, por mais íntimo que seja o juízo sobre essa violência, há necessidade de fundamentar, demonstrar o raciocínio que levou até essa afirmação de falta de razão para ambos os lados.

A origem mediata desse conflito, cujo episódio de agressão aguda está na televisão, é a religião. As duas partes agem em nome de Deus; cada uma acredita intensamente que tem razão porque Deus os escolheu para ocupar aquele pedaço de terra. Esse pressuposto obsta o surgimento de algum fiapo de racionalidade e torna a guerra muito mais sangrenta. Aos ocidentais esse componente religioso pode soar esquisito, arcaico, mas basta lembrar que a cristandade europeia fez guerra por trezentos anos contra os não cristãos ocupantes da Palestina sob o pálio do direito divino de libertar os locais sagrados. Com as devidas adequações, o que se tem hoje diante dos olhos é uma versão das cruzadas. Um povo tentando expulsar o outro porque Deus escolheu um deles para morar ali. Isso é razoável?

A derrota nas cruzadas foi irrelevante para o destino da Europa. Os lugares referidos na Bíblia, depois dois séculos sob controle dos francos, voltaram às mãos dos muçulmanos. A Europa se tornou o centro do mundo a partir do momento que a política e a religião foram se separando. A fronteira entre os reinos de César e de Deus foram demarcadas e o poder político secular precisou encontrar um fundamento não religioso para se tornar legítimo. Esse momento é extraordinário na história porque abriu a possibilidade para que todos fossem considerados iguais pela simples condição humana, independentemente das convicções pessoais sobre as coisas espirituais. Essa cisão entre o divino e o mundano deu azo a uma postura inclusiva na vida política, chegando ao atual voto universal e, por outro lado, propiciou o exercício profundo do sentimento religioso, permitindo aos indivíduos eleger o seu modo peculiar de fruir a ligação com a transcendentalidade, sem imposições estatais sobre a quantidade de orações diárias, jejuns, movimentos corporais, vedações ao riso etc.

Com essa digressão, fugi de Gaza. Ora, não é imperioso pressa para fazer análise sobre o tema porque a novela será longa e haverá outras oportunidades para pensar a respeito do horror. Talvez uns trezentos anos de duração, com capítulos sem novidade, mera repetição da barbárie das cenas anteriores. Essa postura melancólica colide com o sentimento de premência, de urgência, que marca a modernidade; tudo deve ser resolvido logo, depressa. Tudo deve estar prêt-à-user porque o matutino envelhece no vespertino. Na terra onde se superpõem Israel e Palestina, a solidez das crenças não se desmancha no ar como os edifícios que evaporam pela força das bombas. Só o tempo para trazer a luz da razão, superando a faca amolada da fé cega.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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