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A velha bouganville estava nua, expondo seus espinhos ao frio das noites invernais. Vestiu-se de verde quando o sol começou a aquecer as tardes e do verde não passou. Esperar algumas semanas, as flores virão; uma manchinha lilás aqui, outra acolá. As sentenças de morte começam a ecoar: está velha, só faz sombra e umidade, melhor podar. A decisão sobre a vida de quem alegrou tantas primaveras começa a se consolidar; chega o feriado, dia de marido mostrar seu valor. Corta aqui, serra ali, ao final do dia o canteiro central da rua está repleto de despojos daquela que já foi exuberante e agora é amontoado de folhas, galhos, gravetos e espinhos, muitos espinhos. Mãos, braços, canelas lanhadas parecem denotar quão bravia e resistente foi a velha árvore até tombar retalhada.

Hoje o ângulo do muro está vazio e a mudança da paisagem ainda não foi bem assimilada. Será que foi a decisão correta? Se errada, irreversível. Então, melhor auxiliar a terra a dar nova vida. Outra bouganville, uma araucária? Escolher, pensar, mudar de ideia. O tempo passa, o lugar permanece aberto; inço aparece e dente-de-leão, roseta, picão, cobrem o chão. Ah.... a Terra fez suas escolhas.

Sem a proteção da bouganville, o ninho que o sabiá fez na hera fica exposto. A tranquilidade foi substituída pela angústia da rapina que vem dos olhos agudos do gavião. Canoro, o sabiá trina o desespero que o céu azul lhe infunde. Os dias de sol duram pouco e o veranico cede ao vento frio que vem lá do Sul. O cinza parece dar algum conforto à ave. Talvez as nuvens plumbeas, que aproximam o céu do chão, tragam ao sabiá alívio à agorafobia diante do céu aberto.

Frio primaveril, hora de acender a lareira e a lenha extraída da bouganville começa a crepitar. Súbito, aroma exótico invade a casa; as achas ardem e exalam perfume que as flores do arbusto espinhento negam. As chamas bamboleiam e vão pouco a pouco reduzindo a pó o que do pó veio. Brasas, cinzas. Viva, só a memória da cor que anunciava dias menos gélidos nesses tépidos trópicos.

Morte de um lado, vida do outro. Ovos eclodiram e dois emplumadinhos alçam voo depois de solfejar o canto da família. Será que na próxima primavera virão a esse local que ficou desprotegido?

Dois dias de sol tímido, acovardado ante o vento frio, fazem de mais um feriado o momento adequado para continuar a jardinagem amadora. A tarde inteira agachado sobre o gramado arrancando inço cobra a fatura na boca da noite: joelhos e costas doem; a palma das mãos está em chagas pelo manejo das ferramentas. Ao abrir as mãos para olhar as palmas, fica a sensação de cena surreal, quase de um jardineiro estigmata. Será que o carpinteiro também era jardineiro? A rotina volta, o trabalho no jardim fica mal acabado, as mãos doloridas trazem a todo momento a lembrança de que o trabalho dignifica o homem, mas também dá calos.

O sol não resistiu e cedeu às nuvens que se desfazem devagar, em chuva fina que espalha tom metálico sobre as cores que tentam anunciar a primavera. O verão em Curitiba é inverno razoavelmente agradável, penso enquanto corro sob a garoa até o carro. Ao ligar o rádio, o meteorologista fala sobre la Niña que esfria as águas do Pacífico Sul, afetando o tempo em Curitiba e provocará estio. Sei não, aqui até fotos do sol usadas como pano de fundo da tela de computador ficam esmaecidas, nubladas. Djavan não comporia "Lilás sem o céu azul para ver o por do sol, lindo como ele só"; se bem que "um dia frio, um bom lugar para ler um livro" são poéticos e fazem tudo ficar belo para o prazer de amores gris.

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