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Os paranaenses têm relação contraditória com a tragédia do Japão: é no fim do mundo e, ao mesmo tempo, afetou parentes, amigos, vizinhos. Os sanseis, yonseis, gosseis, fazem parte da paisagem fenotípica dos pés-vermelhos e muitos, mais de trezentos mil, foram ao Oriente à cata de melhor condição de vida. A Fumiko, o Mikio, o Hiroshi, o Kadioshi são presenças vivas na memória das amizades que construíram a minha personalidade. O Japão é longe, mas, ao mesmo tempo, está dentro da gente, como parte da bagagem cultural e emocional que identifica a paranidade.

À dor vinda de longe somou-se a de perto, logo ali, depois da Serra do Mar. As montanhas derreteram como massa de sorvete e os caiçaras do Paraná sofreram tsunami de lama. A paisagem nostálgica do Brasil antigo de Morretes e Antonina, súbito, tornou-se parecida com a terra arrasada do litoral do Japão. Na dor, todos somos muito parecidos, independentemente da latitude ou longitude.

O dilema do cronista é se ver diante de fatos que absorvem completamente a atenção da mídia e do público, mas ele, o sujeito que escreve longe da redação do jornal, no retiro dos seus aposentos, tarde da noite, é bicho estranho, dado a esquisitices, como a de ver a foto de uma flor que escapou ilesa da avalanche e divagar perdidamente sobre a intensidade da beleza sobre o pano de fundo da tragédia. Tema banal?! Será desrespeitoso diante das famílias dilaceradas, das vidas que se foram? Não sei, não tenho a resposta perfeita. Diga-se, a imperfeição é a condição humana. Não a imperfeição agressiva, bestial. Humano não é divino. De certa forma, a imperfeição nos leva adiante; nos impede de sucumbir de dor quando a natureza revela o nosso nanismo, insignificância. Invadidos por otimismo que cega a realidade, cuidamos do jardim. Amanhã haverá flores para mitigar a pungência dos lutos.

O cronista é ucrônico, discrônico. Sente tempo que não existe, se desalinha com o existente. As suas antenas captam sinais da realidade e da alternatividade. A licença poética flutua confusa entre a percepção analítica e o delírio imaginativo. O cronista não é analista, não é poeta. Híbrido, se angustia entre os dois mundos. Olha as janelas, as telas, vê os mercenários de Kadafi metralhando civis desarmados e, na mesma imagem, observa a luminosidade da areia e do céu. A fumaça radioativa vai aos ares de Fukushima e a inteligência busca argumentos para falar sobre a fissão nuclear, a produção de energia, mas as emoções vagueiam pela Rosa de Hiroshima, feridas rosas cálidas. A crônica brota nessa zona gris, indefinida entre o comentário científico e a alucinação criativa. Talvez reúna o pior das duas, como quem serve a dois senhores, pisa em duas canoas.

A crônica não tem identidade literária pura, porém traz a alma comum para o texto. Vivemos porque temos os pés no chão e suportamos o sofrimento do viver porque a cabeça, volta e meia, está na Lua.

Leitores, este espaço gráfico de dúvidas perenes e certezas fugazes está prestes a completar três anos. É muito bom ter a vossa companhia.

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