• Carregando...
 |
| Foto:

Na semana passada foi comemorado o dia do escritor. Soube da data por mensagens enviadas por leitores. Quando as li, me recordei da emoção que senti há duas décadas quando vi a estatueta do escriba no Museu do Louvre. Imaginava-a do tamanho de uma pessoa e me surpreendi com a miniatura. Linda, mas miniatura. Naquela terracota está a reverência à arte e ciência de escrever.

O escriba egípcio está sentado com as pernas cruzadas e, sobre um palimpsesto estendido no colo, escreve algo que, presumivelmente, é anotação contábil das colheitas, estoques e vendas de alimentos. Sim, a escrita surgiu para atender a economia, não a arte. Nada místico, nenhum conhecimento vindo das estrelas; apenas registros de grãos, animais, preços, quantidades, créditos, débitos, calotes. Registros sobre a produção de telhas, tijolos, cargas embarcadas. Nenhum elã, nenhum charme poético.

Nos quase 4 mil anos de idade da estatueta a escrita se tornou de domínio comum. Caminha-se para o momento em que a humanidade esculpirá estátua para lembrar o último analfabeto.

Os idiomas dos povos ágrafos sumiram na amnésia do tempo. Verba volant, scripta manent. Grafar – gravar – eterniza as palavras e gera herança cultural que transpõe o estreito limite da contato familiar intergeracional. Pode-se atribuir à invenção da escrita a ampliação da organização política do clã à megaestrutura estatal.

Antes dos livros em escala industrial despejados do prelo de Gutenberg, os copistas, soldados rasos da escrita, manuscreviam cópias de livros ao custo de R$ 50 mil cada exemplar, na estimativa de Nate Silver, em Sinal e Ruído. A esse preço, textos eram objeto de luxo ou de extrema necessidade, não havendo margem para romance, ficção, humor, drama, tragédia. Antes da tipografia, a produção anual de livros na Europa roçava o zero; depois, em 400 anos, saltou para 14 milhões anuais.

Steven Pinker vai mais longe e diz que os escritores, escribas da contabilidade emocional, contribuíram para a redução da violência ao propiciarem, em seus livros, a visão do sofrimento pela perspectiva das vítimas. Dickens, com os seus personagens paupérrimos de dinheiro e ricos de caráter, fez mais pela erradicação da pobreza do que todos os militantes socialistas juntos.

Os britânicos consumiam livros em quantidades superiores aos vizinhos continentais e, de acordo com a tese de Pinker, vivenciaram o declínio da violência antes dos outros por causa da difusão da obra dos escritores, incluindo nessa categoria o dramaturgo pater.

O discurso racional sobre a escrita vai sendo pensado numa parte do cérebro. Noutro canto, a melodia da Vanessa da Mata insiste em ocupar os neurônios, dizendo que as palavras saem quase sem querer, rezam por nós dois, tome conta do que vai dizer. A confusão entre sinal e ruído remanesceu da música que ouvi de manhã e ficou com fragmentos grudados na memória. Imagino o escriba na rotina opressiva de um contador tendo laivo de poeta e no meio do rol de cabras e ovelhas de Faraó lançando um verso, registrando emoções.

Úteis os escritores não são. Porém, o prazer não se mede pela utilidade.

Dê sua opinião

O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]