• Carregando...
 |
| Foto:

O feriadão que inaugura o verão é chamado, de modo meio eufemístico, de finados, levando a mente a não focar o motivo central do dia sem trabalho: a memória e homenagem aos mortos. Praia com chuva e vento, aparelhos de som equipados com automóveis, fila na padaria, farmácia, mercado, estrada e, nos jornais do dia útil seguinte, o saldo de vítimas de acidentes de trânsito e da violência provocada por embriaguez. A reflexão sobre a vida e a morte, o silêncio humilde diante dos mistérios da existência, da presença e ausência, tudo isso é vaga lembrança provocada pela televisão que mostra a lavagem dos túmulos, o preço das flores.

Não é preciso ser adepto de religião para se extasiar diante da magnitude da existência. Aos ateus a vida e a morte causam encantamento, pois ainda que se considere a vida apenas como arranjo complexo de matéria, essa combinação de minérios é artesanato, não indústria, visto que cada peça é única e tem a consciência dessa individualidade. Para os teístas há artesão que põe a mão no barro e modela um ente vivo. Haja ou não haja artesão oleiro, cada vivente que teve consciência da sua existência foi absolutamente singular: apreciou estrelas, campos, oceanos, como nenhum outro de sua espécie e quando morre, finda esse universo particular para sempre.

Ao vir do pó, por acaso ou pela vontade divina, e ao pó voltar, se carrega o fardo de uma indagação: a que se destina? O feriado destinado a lembrar dos mortos, é também momento para refletir sobre as razões da vida e ter a certeza de que nunca se conseguirá resposta completa e, em que pese a incerteza sobre a casualidade ou finalidade do existir, se existe. Existir é o fato forte, completo, que empurra a vida nos aclives e declives.

Nos cemitérios há resíduos de matéria dos corpos das pessoas que existem nas lembranças daqueles que depositam ramalhetes, acendem velas, oram. Os povos da antiguidade cultuavam os antepassados como deuses vivos, com os quais se entabulavam diálogos sobre as coisas do presente. As religiões monoteístas veneram um deus que nunca foi moldado no barro, nunca viveu ou morreu porque é. A vida e a morte flexionam o verbo ser: foi, é, será. A eternidade não permite a flexão temporal do verbo, pois o eterno sempre é.

A consciência e a vida são a mes­­ma coisa e a morte é o fim da individualidade? O indivíduo permanece consciente post mortem em contemplação eterna? O indivíduo volta a viver na carne inúmeras ve­­zes, com consciência que independe da encarnação? Ora, qualquer uma das possibilidades é fascinante, mas é preciso amar como se não houvesse amanhã porque cada vida, no sentido de consciência durante a existência de uma agregação individualizada de matéria, é diferente da vida dos outros e, se for o caso, de outras vidas de um mesmo ente. Ela não se repete, não se recupera, não se refaz. Ainda que haja clones, as experiências dessas pessoas as diferenciarão da vida do ente clonado. Os brotos serão semelhantes, nunca idênticos à matriz. Se as vidas fossem todas iguais, não teriam valor. São preciosas porque distinguíveis.

Gonzaguinha, cuja vida foi breve e luminosa como meteorito, dizia que alguns pensam que a vida da gente é nada no mundo, é uma gota, um tempo que nem um segundo e, também, há quem fale que é um divino mistério profundo, o sopro do criador numa atitude repleta de amor. Seja nada ou mistério profundo, finados é, nos dias acelerados do nosso modo de viver, a oportunidade para, diante da morte, pensar na vida.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito na UTP.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]