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A memória guarda imagens de contornos indefinidos, cores borradas, misturadas entre o visto e o imaginado. As fotografias imobilizam o momento. Não entregam a quem as vê a completude das sensações e pensamentos da pessoa fotografada, mas registram a face, o corpo, o ambiente, as roupas. O avô e a avó circunspectos na cadeira da varanda; os primos agrupados às pressas para aproveitar a última foto do rolo; a tia que faleceu; o narigão do vovô acentuado pela sombra que o sol fez; a rara imagem da vovó. A vida voa, mergulha no esquecimento; as fotos estão ali. Pequeninas quando eram muito caras; colorido esmaecido quando se tornaram acessíveis. Hoje, às centenas nos discos dos computadores. Quadros que animam as linhas de quem vive e, de vez em quando, precisa olhar para trás.

Caixas com cheiro de mofo no maleiro do guarda-roupa acumulam fotos, cartões postais, cartas de um tempo em que se sabia escrever. Tudo vai ficando depositado como arquivo de antiguidades emocionais que são visitadas em dia de faxina. Aniversários, bodas, festinhas de garagem, banhos no rio, ocasos lindos que parecem ovos fritos. Versinhos juvenis para namoradas que a vida levou para destinos que apenas o Google sabe qual foi. A lixeira de recicláveis é companhia desses momentos. Botar fora as cartas que revelam imaturidades? Ora, já faz tanto tempo que estão por aí. Agora, fiquem. A presença delas dá a sensação de que o passado não está tão distante e que as lembranças fugidias são verazes. Aquela foto em que um dos olhos está fechado e outro, semicerrado, meio vesgo. Que vergonha! Aquela pessoa sou eu?!

Fotógrafos perambulavam pelo interior visitando escolas para ganhar algum dinheiro fotografando os estudantes. Piá magricelo, com postura compenetrada de quem estuda, a faixa do Grupo Escolar e datas tão remotas que parecem outra vida. Só me resta a lembrança da tristeza de amigos que não tinham dinheiro para tirar a foto. De certa forma, aquela emoção gravou em mim a imagem deles.

Mais caixas vêm ao chão e, de repente, um monóculo aparece. Mostro aos filhos o grande engenho dos anos 60; o olhar desinteressado revela como o uso da internet e os badulaques portáteis de conexão com toda a informação do mundo é divisor cultural. O monóculo, com sua fotografiazinha era objeto de excitação, alegria. Agora, uma bobagem diante da fotografia digital e os programas de ajuste das imagens. Volto o foco para a imagem que repousa no fundo do monóculo e me lembro da visita ao Parque Nacional do Iguaçu, por volta de 1969; a melancia refrescada na água do rio, uns cem metros a montante das cataratas que levantavam nuvem de gotículas; a estátua do Santos Dumont, o mirante, a vigilância constante da Mama, com medo de que alguma criança despencasse na murada das trilhas. Limpas, as caixas retornam ao sono na parte alta do guarda-roupa. Álbuns e fotos soltas ficarão de novo no breu do esquecimento.

Levanto os olhos e começo a observar as fotografias nas paredes: o sogro fazendo pose diante da obra de uma barragem hidroelétrica; noutra, apoiado no avião que usou para obter o brevet; um caminhão empinado com o peso de tora gigante, dos tempos que o Paraná era floresta. A cada imagem, histórias. As fotos emolduradas na parede passam a fazer parte da paisagem. Não somem como as da caixa, mas se integram tanto ao cotidiano que não causam emoção de prender a respiração. Ao fitá-las atentamente fico pensando nas pessoas que se envolveram na captura de um fragmento do tempo. Naquele instante, o agora se tornou sempre.

Escureceu. A faxina acabou. O presente se consumiu na mirada do passado.

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