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Somos a última geração que obedeceu aos pais e a primeira que obedece aos filhos. Ouvi essa oração pronunciada de modo solene, como enunciação de máxima sociológica resultante de comprovação científica. A postura quase teatral do enunciador, fazendo pose de intelectual francês na mesa de calçada de um Café no Quartier Latin me chamou mais a atenção do que o teor intelectual e a conversa desandou em brincadeiras sobre sabedoria de botequim. Assim, embora não tenha sido alvo de atenção do momento da fala, a ideia ficou circulando na minha cabeça co­­mo cometa sem rumo, trombando de um lado para outro, à procura de brecha para se acomodar na órbita de algum sistema conceitual que lhe desse beira.

A obediência que se tem em vista não é a esperada numa estrutura militar ou eclesiástica, bem resumida na expressão oboedientia et pax – o subordinado obedece e fica com o coração pleno de alegria por ter sido mandado. Nos quartéis e igrejas não há espaço para resistência da parte subordinada. Se o polo passivo resistir, a estrutura hierarquizada vai à ruína. Na família, a desobediência não modifica a natureza das relações entre pais e filhos e a legitimidade da ascendência patrial/matrial permanece intacta. Por certo, a desobediência crônica desarranja a família, acaba com o prazer da convivência, mas não horizontaliza a relação; os genitores continuam em posição de mando e os filhos, de obediência.

Qual a razão dessa hierarquia perpétua? No pensamento grego os espaços físicos e emocionais de vivência se dividiam entre privado (idion), público (demosion) e sagrado (hieron), com a ascendência do sacro sobre o profano. A superioridade de uma posição sobre outra numa linha vertical de poder até o ponto no qual acabam os homens e começam os deuses, é a ideia veiculada pela pa­­lavra hierarquia. A sacralidade na relação entre genitores e filhos está presente em todas as culturas; nenhuma civilização aceita anarquia nesse relacionamento. Variações ocorrem quanto ao grau de resistência admitida como legítima, mas ninguém posiciona pais e filhos no mesmo plano ou atribui superioridade hierárquica à prole. Tragédias gregas, mexicanas, coreanas, africanas, narram parricídios, matricídios e todas têm como mo­­ral da história a relevância da hierarquia na família para a boa qualidade da vida social.

Lobos são gregários e o filho pode lutar contra o pai para assumir a liderança da alcateia. Não há, entre eles, o sentido de que o filho tem o dever de respeitar o pai velho e fraco. A imobilidade da hierarquia entre os humanos é construção cultural, mas a sua base é biológica. Os humanos demoram muito para se tornar autônomos. O longo período de lactação, infância e juventude, quando são extremamente frágeis, exige muito investimento dos genitores. Sem a expectativa de autoridade sobre a criação, a máxima "cría cuervos que te sacarán los ojos" levaria mães e pais a deixar a cria ao relento, não ex­­pendendo esforço para nutrir e desenvolver um inimigo. Desam­­parada, a no­­va geração não me­­draria e a continuidade da espécie entraria em colapso.

Então, nós, os quarentões, não somos a geração esmagada entre duas modalidades opostas de relacionamento entre geradores e gerados. Quem faz a opção desidiosa pela ausência de autoridade sobre os filhos está, feitas as devidas adequações da comparação, abandonando a cria à própria sorte. Ocorre, hoje ela não é devorada por vermes, serpentes ou onças. As peçonhas urbanas são de outra natureza: não destroem o corpo, afetam a mente de quem está à deriva. Mandar nos filhos é cumprir dever individual para o bem-estar social.

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