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Passado um ano do terremoto que devastou Porto Príncipe, a capital do Haiti, as coisas continuam quase do mesmo jeito de quando a poeira baixou: caos. Milhares de pessoas vivendo em barracas sem saneamento, alimento, água potável, índice de desemprego em 80%. A descrição se assemelha a muitos outros momentos da triste história desse país que ocupa meia ilha. Jared Diamond descreve as encostas nuas do Haiti como exemplo de ecocídio, situação na qual os recursos ambientais são consumidos até a exaustão. O antropólogo alerta para o risco do exaurimento ambiental do planeta que se transformará, se não houver mudanças no modo de viver, num grande Haiti. Todavia, o contraponto está na parte leste da mesma ilha, na República de Santo Domingo, que tem reservas florestais de bom porte e política preservacionista.

No Haiti ocorreu, além da destruição da natureza, a deleção da cultura política. Houve, com perdão pelo neologismo, politicídio. Dois séculos de ruinosa atividade política instauraram desconfiança que inibe a formação de governos minimamente aptos a obter obediência suficiente para os serviços básicos de segurança, justiça, educação, saúde. A predação do erário e a violência animalesca dos tontons macoute (titios do saco, bicho-papão que pega criancinha) que caracterizaram os governos Papa Doc e Baby Doc são o apogeu da degradação, mas não foram excepcionais. Com raros momentos de Estado, a história do Haiti é marcada pela política como arena da violência e do egoísmo. O resultado, hoje, é fadiga.

Para fazer política é preciso alguma dose de ingenuidade, de crença na disposição das pessoas para dar o melhor de si em prol do desenvolvimento dos seus compatriotas. Na terra arrasada do Haiti se perdeu a inocência. Elites e povo não sonham juntos com dias melhores. A hiper-realidade mata a fé em projetos de longo prazo como a educação e também inviabiliza atividades imediatas como a coleta de tributos para manter aparato de segurança: quem paga se sente tolo ao lado do sonegador e o sonegador crê agir corretamente quando o policial (cujo salário é pago com impostos) lhe pede propina. O único sonho razoavelmente partilhado é ir embora. Sem a crença nas possibilidades míticas da forma mais completa de organização política, o Estado, não se erige um Estado. Sem ele, o humano é o lobo do humano.

Estamos lá com soldados, engenheiros, médicos, para edificar pontes, casas, estradas e propiciar alguma segurança e saúde. Território, gente, edifícios são insuficientes para formar governo. A engenharia política é exportável? Seremos capazes de preencher o vazio de esperança que consome a emoção dos haitianos? Mais que o direito de se autogovernar, eles têm o dever da autodeterminação. A assunção desse dever é que moverá o Haiti para a condição de protagonista da própria história. Isso, nenhum de nós pode fazer por eles.

O segundo laboratório caribenho é Cuba. Conseguirá passar de monarquia a república sem aumentar a pobreza? Disney­­lândia, Roma, Meca de várias seitas marxistas, que iam a Cuba – com a passagem de volta na mão –, para se divertir no parquinho do socialismo e tomar a benção do Papa Fidel, está há duas décadas sem a muleta da União Soviética. A falência, adiada pelas doações de Hugo Chávez e remessas de dinheiro feitas pelos cubanos que trabalham no exterior, especialmente nos Estados Unidos, é um espectro que ronda a Ilha. No Haiti o politicídio ocorreu pela ausência do Estado; em Cuba, pela presença total, geradora de fadiga que faz os indivíduos se comportarem como vítimas da síndrome do Burnout, perdendo a capacidade de indignação e também se entregando a apatia quando a cidadania exige participação, amor a alguma causa pública. Ocorre depressão cívica, não tratável com tarja preta.

Sobre essas massas falidas se construirá o quê? O império do norte tentou brincar de lego e construir democracia no Iraque. Não devemos repetir esse erro primário, mas também não é correto que nos omitamos a pretexto de não intervenção.

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