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Faz lê, lê, lê, tchu, tcha e tcherere. O rádio despeja monossílabas onomatopaicas em músicas que narram a história de um sujeito pobre, sem carro, cartão bloqueado, limite estourado, mas que é muito bom no lê, lê, lê. Não, o tipo não lê Camões, Camus, nem Cassandra Rios. As sílabas balbuciadas aludem àquilo que move o mundo. Freud tentava explicar obviedades, pois todos sempre souberam, embora ninguém admita.

Os jovenzinhos topetudos, musculosos sob medida, com gel escorrendo pela costeleta, encantam multidões que, ignaras em meio ao dilúvio de informação, nada sabem das marotagens semânticas desde sempre emprenhadas em versos musicados. Genival Lacerda, barrigudo, baixinho, vestido como palhaço de feira, fez o Brasil ficar com ideia fixa na butique da Severina Xique-Xique, objeto da cobiça de Pedro Caroço. Não bastante, ela deu o rádio, deu de graça e nem disse nada. Moça tão direita, deixou estragarem o seu Chevette.

Os paleo-adolescentes que dançam ao som do sertanejo sem sertão apupam variedades musicais adjetivadas de brega. Ora, o brega é chique, sempre foi; é parte do nosso ponto de contato com a mediocridade que garante a unidade cultural da nação. Em alguma fração de nossa intimidade há breguice pronta a explodir e se deixar levar pelos versos de duplo sentido, pelas cacofonias destacadas no fraseado musical. Essas coisas têm alta pregnância, colam na mente e, súbito, são balbuciadas no banho, naqueles minutos no ponto de ônibus, na fila do banco.

Ouvir besteiras, certo perdeste o senso! Vos direi no entanto que essas bobagens não são degeneração, são o próprio gênero. Ouça-se Zé Doradin & Ribeirão relatando a receita de capim canela para engordar égua magrela: a construção melódica é sertaneja em estado puro, remetendo a arpejos de viola que evocam ranchinho ao luar do sertão. Cantada há décadas, fazia corar beatas e deleitava o grande público ávido por semântica sinuosa, provocadora do prazer de interpretar as dubiedades decorrentes das palavras sequenciadas de modo a gerar significados chulos. Diversão para gente comum é arte.

Sinfonias atravessam os séculos. As cacofonias são criadas todos os dias e desvanecem ao entardecer para ressuscitar em outras vestes no dia vindouro. As novidades musicais são reciclagem de itens do museu da memória popular. Parecem novas porque diminuiu a entrega, a tradição, de cultura entre as gerações. Como sempre somos os mesmos, sem a recepção do acervo, as pessoas que vivem num lócus temporal imaginam que estão inventando a roda, descobrindo a América. Não apenas egocentrismo, também etariocentrismo.

O deboche do Chacrinha faz falta para nivelar pela média todas as manifestações culturais, apresentando no mesmo dia um expoente da bossa nova e os Originais do Samba cantando a paixão pela dona do primeiro andar. Aposto que dessa muita gente vai se lembrar!

A linha entre o mau gosto e a obscenidade é tênue. Segurar o tchan nessa fronteira faz a diversão da massa que, a plenos pulmões, acompanha tchu, tcha, lê, lê, tchere, tchetche. Nessa casa tem goteira, pinga ni mim!

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