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Causa mortis: traição. Epitáfio: jaz boa ideia mal executada. Poeira do tempo: memória sépia das reuniões de presidentes da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai nas quais a confiança recíproca moldava a integração. No nascimento, Ode à Alegria; no fenecimento, Chalana. O Paraguai vai magoado e, bem sabemos, com razão; fomos ingratos, ferindo o seu coração. O Mercosul naufragou na curva do rio.

Suspender o Paraguai do Mercosul sem assegurar ampla defesa ao novo governo foi postura imperial – quiçá, imperialista. Além disso, feriu a literalidade do art. 4.º do Protocolo de Ushuaia. Para piorar, durante a suspensão, aceitar o ingresso da Venezuela, contra a vontade manifesta do Paraguai, é traição. Ninguém permaneceria em um clube que fizesse algo parecido. Punha a harpa no saco e ia cantar guarânia em outra freguesia.

Na situação excepcional de aplicação da cláusula democrática de Ushuaia, nenhuma modificação estrutural poderia ser feita no grupo de Estados que deram origem ao Mercosul. Toda a atenção do bloco deveria estar concentrada no cerzimento do ambiente democrático roto. Aproveitar a ausência forçada do Paraguai e trazer a Venezuela pela porta dos fundos é ofensivo à dignidade guarani e, ao mesmo tempo, capitis diminutio para a Venezuela, que entrou no clube de modo sinuoso.

O Uruguai existe porque a Argentina não se conformava com os canhões da Colônia de Sacramento apontados para Buenos Aires. Para afastar o Brasil de suas barbas, fomentou o movimento separatista que culminou, em meio a refregas sangrentas, com a independência da Província Cisplatina em 1828. O Paraguai permaneceu soberano depois da guerra, em 1870, porque o Brasil impediu que a Argentina o anexasse. Ambos, Uruguai e Paraguai tiveram existência definida pela condição de tampão entre os vizinhos grandes. Contudo, o vício de origem não macula a soberania e a autodeterminação desses povos na modernidade. Brasil e Argentina trataram o Paraguai como Estado menor, infante política e juridicamente incapaz. O silêncio uruguaio foi, no mínimo, imprudente em relação à sua própria condição.

Ver o finado Mercosul pela perspectiva econômica é estreitar o projeto que assenta nas desavenças do século 19. Não a rudimentar tese de "pagar a dívida dos massacres". Não houve bandidos e mocinhos na guerra que alinhou os três contra o Paraguai; e sangue, de vencidos e vencedores, é impagável. A integração formalizada 131 anos depois do fim da guerra teve no Tratado de Assunção um momento que os historiadores do século 22 verão como cicatrização das últimas feridas emocionais. Os quatro países se aproximaram para construir as pontes da amizade cooperativa imprescindível ao desenvolvimento econômico e político, superando as assimetrias regionais a ponto de, algum dia, se chegar à livre circulação de bens, capitais, pessoas e serviços.

O vínculo entre os quatro fundadores do Mercosul não se resume à vizinhança territorial entre Estados substituíveis uns pelos outros. O Mercosul expressava o sonho de que o passado belicoso entre os vizinhos ligados pelo Rio Paraná fosse prelúdio de futuro amistoso. Trair o Paraguai para dar tribuna a Hugo Chávez amiudou o projeto, dando-lhe as cores tristes da realpolitik.

Réquiem à morte de um sonho.

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