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A primeira reação diante das propostas de descriminalização apresentadas na convenção anual da Comissão de Narcóticos da ONU, é de desconforto; tem-se a sensação de frouxidão diante do grave problema da dependência química, um fardo para a sociedade e, principalmente, para as famílias dos viciados. Mas o argumento de autoridade abre as portas da percepção para a vasta divergência acerca do assunto e, a partir da ponderação das teses, auxilia a consolidar opinião contrária à legalização ou a mudar de ideia. Aventar o abandono de opinião assentada há muito, especialmente num tema tão passional, é assustador. Contudo, só os mortos e os psicopatas têm ideia fixa.

A moralidade é a nota distintiva entre humanidade e animalidade. Para saber se uma conduta que se quer praticar é moral ou imoral basta estendê-la imaginariamente a todas pessoas. Se houver redução ou supressão das condições de convivência, a conduta é absolutamente imoral. A drogadição é imoral. É fácil imaginar a catástrofe se todas as pessoas, a todo tempo e lugar adicionassem químicas alteradoras da consciência a seu cotidiano. Se todos fossem dependentes as chamas da civilidade se apagariam. Num mundo de "doidões" não haveria espaço para o humanismo que é um esforço contra a bestialidade. A sobriedade não é o objetivo da civilização, é condição sine qua non.

O padrão moral é similar a um esquadro que propicia a identificação do direito e do torto. Não faz sentido criticar o ângulo reto – um dado natural. Os esquadros morais são construídos pela cultura para servirem de referência sobre o que é direito e o que é torto na vida social. Como instituição humana, estão susceptíveis a crítica quanto às angulações feitas entre as várias opções existentes. Tanto que, se todos praticarem costumeiramente uma conduta inicialmente reputada imoral, a valoração será modificada e a conduta passará a ser considerada como tolerável ou, mais que isso, positiva. É uma situação de moralidade estritamente cultural, vinculada a uma época. Porém nos eventos que tocam à moralidade absoluta, a prática de condutas imorais por um grande número de pessoas não é suficiente para que ocorra a mudança do valor negativo para o positivo. O fato de muitos praticarem corrupção no serviço público não torna essa conduta moralmente aceitável.

Enfrentar a imoralidade é parte do esforço civilizatório. Na rotina da vida as pessoas se deparam com situações nas quais a manutenção firme de uma posição moral pode produzir consequências danosas e ficam na dúvida sobre manter-se fiel aos princípios ou pensar nos danos. Fazer essa escolha é uma das grandes dificuldades da vida individual e social. O combate à imoralidade da drogadição -- uma questão de princípio -- feita de modo militar, produz consequências severas para toda a sociedade. Deve-se lutar pela moralidade, ainda que o mundo pereça com os danos oriundos do enfrentamento? Será possível outra forma de luta que mantenha a integridade dos princípios morais e tenha menos efeitos colaterais?

Estima-se que 80% dos homicídios ocorridos em Curitiba estejam relacionados às drogas; no México o número de policiais mortos alcança cifras de guerra; o assassinato do presidente da Guiné-Bissau é parte do conflito que está levando o país à condição de narco-Estado; os ganhos dos traficantes aumentam à medida que a repressão melhora de qualidade; a massa de dinheiro envolvida corrompe o aparato de segurança pública em todos os lugares. Por fim, o número de consumidores não diminuiu. Esses fatos são notórios.

Os resultados negativos devem ser considerados para mudança radical de posição com a liberação do consumo e construção de hospitais no lugar de cadeias? Eventual rendição a esses danos dará ensejo a outros nivelamentos por baixo?

A única certeza: as boas perguntas e respostas nascem do dissenso respeitoso. O pensamento único é o túmulo da inteligência.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP

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