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O teor do diário de Luís XVI no dia 14 de julho de 1789 é emblemático quanto à insciência dos governantes acerca da relevância dos acontecimentos. Multidão marchou por Paris – então infecta –, destruiu tudo no caminho e derrubou os portões da Bastilha, onde ficavam os presos políticos. O rei, alienado do mundo real, não percebeu os acontecimentos sob o seu nariz e foi para a cama no maior tédio, enquanto fogueiras do confronto entre a gendarmeria e a plebe clareavam o céu da cidade. O movimento da massa acelerou o processo político, detonando a Revolução Francesa, da qual somos consequência mediata.

Quem sabe o diário da presidente(a) da República, quando vier a público como documento histórico, tenha alguma anotação semelhante e, na letra miúda, haja registro de paixão não correspondida, e marquinhas de beijo feitas com batom assinalem os dias tediosos em que não havia algo importante a anotar. Talvez alguma mal-traçada linha sobre a vaia monumental no estádio Mané Garrincha, na abertura da Copa das Confederações: "Hoje foi desagradável, o povo vaiou o Felipão; acho que vou passar uma carraspana nessa gente".

Foram dias muito curiosos. Todos estavam no mundo da lua. Governos, oposição, políticos em geral não esperavam algo tão massivo e violento e se comportaram como se fossem selenitas e não terráqueos, com os pés plantados no cotidiano brasileiro. Num minuto verberavam contra os baderneiros; noutro, só faltavam ir para a rua segurando cartaz com palavras de ordem contra a precariedade da saúde, das escolas, do transporte urbano e das estradas, e contra os gastos com o circo do futebol. Quem sabe, até reclamando da tomada de eletricidade com três pinos. Elites mais atarantadas que o povo.

Nos jornais escritos, falados, televisados, internetizados, doutores em passeata fizeram análises cheias de palavrório técnico, mas com a mesma estupefação e dificuldade de explicar por que tanta gente reclamou de tantos temas diferentes em tão pouco tempo. Eu, que agora escrevo essas linhas bem traçadas pelo editor de texto do computador, me sinto confuso para analisar e prognosticar efeitos. Com participação e organização de passeatas no currículo – a maioria sem sucesso –, ainda estou pasmo no sentido intelectual e, emocionalmente, sinto alegria ao ver a cidadania viva e, ao mesmo tempo, angústia diante da violência usada como meio de ação política. Alegria, medo, dificuldade para compreender o que aconteceu. De modo kafkiano, barata tonta.

Multidões deram suporte ao bem e ao mal. Ao longo do tempo, milhões estiveram nas ruas apoiando guerras, racismo, linchamentos físicos e morais. Indivíduos diluídos na emoção coletiva, comportando-se como células de monstro que devora a oposição e a diferença. Nesses nossos dias tivemos destruição e construção imbricadas, amalgamadas. Parece que prevaleceu a individualidade, a singularidade não representável, no dizer de Antonio Negri, com sujeitos falando por si mesmos. Na rua as pessoas se apresentaram, numa forma direta de ação política, sem os mecanismos de representação.

Há muito a assinalar no diário. Certamente, quando esses eventos forem história, perceberão que em 2013 de tédio não padecemos.

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