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As imagens dos fiscais da área de embarque do trem suburbano do Rio de Janeiro chicoteando os passageiros para que entrassem rapidamente no vagão é assombrosa. Ela é tão amarga quanto os pelourinhos do Brasil velho que insiste em permanecer vivo mais de um século depois da fundação da República. Como sempre acontece nessas situações indignas, as autoridades exigem providências imediatas e a demissão dos culpados. Ora, os fiscais são a face visível de uma estrutura pública burra, indolente e cara. Eles foram demitidos, mas as coisas continuarão exatamente como antes, até que algum novo escândalo leve autoridades a engrossar a voz e falar com ar severo que providências devem ser tomadas. É bom não esquecer que nas Minas Gerais a galhofa para essas atitudes teatrais e inócuas é um gole da cachaça de nome Providência. Diante de problemas, se toma uma Providência.

Parece que estamos embriagados pela ineficiência. Os serviços públicos funcionam tão mal que nos acostumamos a levar a vida em meio ao caos, com a sensação de que não há jeito a dar e que a situação existente é a única possível. Será que outro mundo é possível? Não penso num mundo de anjos como os idealizadores do Fórum Social Mundial imaginam, no qual todas as pessoas cooperam como se não fossem humanas. As pessoas são o que são por força da natureza; as cidades, os serviços públicos, as instituições são o que desejamos que elas sejam. A boa qualidade é alcançável; a ineficiência não é destino traçado por Deus.

O vício da má qualidade contamina as expectativas que as pessoas nutrem em relação ao funcionamento da vida social. Tivemos a rara oportunidade de construir uma cidade nova a partir do vazio. Ao ver Brasília hoje, dá desgosto. Ela é pelourinho, não redenção. Houve a junção de vários gênios (Juscelino, Lúcio Costa, Niemeyer), mas o resultado não rompeu os limites culturais da mediocridade que aceita a falta de qualidade como parte da paisagem. Brasília foi construída quando o metrô de Londres era quase centenário: por que o metrô brasiliense não foi construído junto com a cidade? Paris, Tóquio, Nova Iorque, Moscou, não eram exemplos bastantes da eficiência dessa modalidade de transporte? Em qualquer das nossas cidades, o transporte público é sofrimento, castigo. Escapam da chibata apenas os senhores de engenho que utilizam helicópteros. Nos ônibus, carros, motos as pessoas são chicoteadas pela ineficiência pública, a nossa música urbana.

As filas com mais de cem quilômetros de veículos parados na "poluicéia" desvairada não sinalizam progresso; são demonstração cabal e vergonhosa de ineficiência, de carência absoluta da vontade de domar o destino. Quando os paulistanos presos nos engarrafamentos são banhados por dilúvios, não há providência divina com a arca de Noé para livrá-los do sofrimento. Escravos de uma cultura complacente com a má qualidade, saem do pelourinho com as carnes lanhadas pela chibata, mas no dia seguinte estão todos ali, prontos para mais uma dose de música urbana.

Ainda que sejamos animais políticos na definição de Aristóteles, a nossa vida gregária não é a de rebanhos ou matilhas; temos o poder de criar condições confortáveis para viver. Particularmente a nós, brasileiros, a embriaguez da ineficiência é mantida com tragos da crença de que somos inferiores, incapazes de estabelecer modos civilizados de convivência. Assim, cabisbaixos como reses, vai-se tangendo a acomodação com o sofrimento que a nossa incúria perpetua. Para marcar uma ruptura, a violência contra os passageiros do trem deveria ser purgada com a demissão dos dirigentes políticos, não apenas dos fiscais-feitores. Um belo harakiri na Central do Brasil também poderia ser cogitado.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP

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