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A morte de brasileiros no Haiti demonstrou que a tragédia não ocorreu em outro planeta: foi ali, na primeira esquina do mundo. Por que estávamos lá? Haiti precisa da presença estatal estrangeira? À primeira indagação a resposta é visual; as imagens falam por si, denotando a inexistência de Estado haitiano. Há território e gente, mas não há organização política apta a assegurar ordem suficiente para o desenvolvimento de atividade produtiva. Os haitianos vivem em situação de natureza, na qual cada um cuida de si e todos os outros são potenciais predadores. O relacionamento entre os indivíduos é acentuadamente competitivo, pois não há confiança suficiente a ensejar cooperação prolongada, construtora de instituições.

Poucos ousam discutir as causas da dificuldade dos haitianos de construir organização estatal; ou, caso se considere que ela existiu em alguns momentos, a incapacidade de mantê-la. Togo, Camarões, Costa do Marfim, são muito semelhantes ao Haiti no que toca à exiguidade territorial, à francofonia e, óbvio, à origem africana de seu povo. Contudo, diferentemente do Haiti, são Estados que se equiparam em oferta e qualidade de serviços públicos a quase todos os países latino-americanos. Por medo de serem tachados de racistas, a maioria dos estudiosos evita observar o Haiti como objeto de ciência social, para tentar entender com profundidade esse fenômeno tão representativo da impossibilidade de vivência anárquica, sem governo, de grande contingente de pessoas. Com isso, ante a ausência de conhecimento sociológico científico, ganham corpo as "explicações" ideológicas que ora imputam aos haitianos um azar histórico por serem macumbeiros, ora os livram completamente da responsabilidade atribuindo-a aos franceses, aos americanos, aos dominicanos, ao capitalismo, enfim, a qualquer desses espantalhos chavistas. Ideologia é dogma, convencimento sem inteligência; ciência é ceticismo, dúvida, aplicação de todos os recursos lógicos ao alcance da condição humana.

Primo vivere, dopo filosofare. Para as urgências vitais que o terremoto impôs aos haitianos, a caridade dos estrangeiros é a única salvação porque os moradores das regiões do país não atingidas pelo sismo mal e mal conseguem cuidar de si, quanto mais dos vitimados. Porém haverá momento em que a premência cessará, ruas estarão desobstruídas, encanamentos refeitos, novos hospitais construídos. E então, tudo voltará à normalidade cruel de antes ou se darão passos à frente?

Sem estudar, livres de preconceitos ideológicos, as razões do insucesso dos haitianos para a consolidação de organização política minimamente suficiente à vida civilizada, não seremos capazes de auxiliá-los a criar as condições para a autodeterminação e, talvez, passem décadas presos à dependência humilhante de soldados, policiais, burocratas, alimentos estrangeiros. Propiciar ambiente para que os haitianos se organizem politicamente e erijam a sua soberania diante do mundo, é tarefa que combina conhecimento acurado da realidade social e talento político. Oxalá tenhamos o bastante de ambos.

Por fim, um tributo: palavras são incapazes de expressar a relevância da vida de Zilda Arns. Atos, apenas atos que produzam sorrisos de crianças e mães, tais os que ela gerou aos milhões, podem palidamente mostrar como a vida dessa curitibana adotiva perfumou o seu tempo. Pessoas dessa estirpe agem com tal intensidade que parecem mil em ação simultânea. A onipresença é alcançada pelas ideias e atitudes que encantam multidões. Gente luminosa como Zilda está sempre presente em muitos corações ao mesmo tempo.

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