A China nos deu pólvora, bússola, papel, macarrão, lojas de R$ 1,99 e a certeza de que o mau-caratismo é universal. Dando aos dirigentes políticos chineses o desconto da condição humana, demasiadamente humana, foi uma tremenda maldade o que fizeram com a pequena cantora prodígio, Yang Peiyi, de apenas 7 anos de idade. Ela é gordinha, dentes tortos, feinha, e a China quis passar ao mundo imagens de beleza cênica e, de certa forma, eugênica em relação aos dançarinos, músicos, malabaristas. Para isso uma menina muito bonita, porém desprovida de talento musical, dublou a música cantada por Peiyi e o mundo inteiro, iludido, se encantou com a combinação da bela estampa e voz angelical.
A intenção de propiciar um espetáculo lindo torna justo o meio utilizado? O sofrimento de Peiyi vale o prazer que tivemos ao ver a face bonita de Lin Miaoke? Se estivéssemos assistindo a uma encenação teatral promovida por iniciativa particular para puro entretenimento da platéia, talvez a "maquiagem" fosse aceitável. Porém a abertura da Olimpíada não se destina ao deleite ou distração; é uma festa de congraçamento dos povos em torno do esporte, permeada pelo ideal de competição honesta e fraterna. Embora seja uma vitrine da nação anfitriã, a festa também faz parte das emoções de aproximação sincera entre os povos, num momento em que se torna mais nítida a nossa igualdade como pessoas que se esforçam para superar as limitações físicas.
A troca das meninas e a dublagem foram fraudes que macularam o espírito olímpico. Embora essa expressão pareça vazia, há um conteúdo diáfano, mas perceptível, a nos dizer que no momento dos jogos devemos ir mais alto, mais forte e mais longe também nas posturas éticas. Além das vitórias físicas, as morais.
A finada União Soviética, a China e outros países que praticaram o chamado "socialismo real" sempre quiseram mostrar ao mundo que estavam construindo um novo humano, fisicamente perfeito e moralmente livre da decadência burguesa do capitalismo. A Alemanha comunista fabricava atletas à base de produtos químicos que os deixavam similares a robôs. De fato, o novo homem socialista era construído e programado como se fosse uma máquina. Os feios e os dissidentes políticos eram banidos da ribalta porque tisnavam as flâmulas da propaganda que alardeava o sucesso desse admirável mundo novo. Hitler fez algo parecido na Olimpíada de Berlim, em 1936, ao excluir os atletas alemães que não encarnassem o estereótipo da raça superior, destinada a dominar o futuro.
Yang Peiyi, com a sua carinha de boneca de porcelana, está para a Olimpíada de Pequim como Jesse Owens para a de Berlim e o etíope Abebe Bikila para a de Roma e Tóquio. Owens, um homem negro, reduziu a pó o discurso de Hitler sobre a superioridade ariana e Bikila, ao vencer a maratona descalço, demoliu os aparatos tecnológicos dos concorrentes bem calçados. Peiyi expôs ao mundo a dificuldade que a provecta China tem para fazer escolhas entre o certo e o errado, entre o falso e o autêntico, como preceituado na doutrina de Confúcio.
A ópera bufa da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, maravilha audiovisual, será lembrada como um grande espetáculo e um engodo. A China, além do papel, nos deu papelão.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor UTP.
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