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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Jardim da Paz, enuncia a placa defronte ao cemitério. Lembrei-me da tabuleta no frontispício de uma pousada holandesa, na qual havia desenho de jazigos, encimada pela expressão "paz perpétua", aludida por Kant no texto em que lançou o projeto da federação para a paz entre os povos. A associação entre cemitério e paz é antiga. Requiescat in pace, diziam as lápides dos belicosos romanos. Ante a notícia do falecimento de alguém que padecia de dores físicas e emocionais, costuma-se dizer que finalmente a pessoa está em paz. Contudo, morte é afonia. Não é paz no sentido de convivência tranquila, sem temores em relação ao próximo. Mortos não "convivem", jazem.

O medo pode ser tão intenso que os vivos silenciam como se mortos estivessem. O medo mata a cidadania e torna as cidades parecidas com cemitérios. Noites silenciosas, pouquíssimas pessoas na rua, vozes sem volume. Criminosos ditatoriais e ditaduras criminosas têm o silêncio como lei. Bairros passam a noite ermos, sem viva alma na rua, em silêncio sepulcral. Nações têm dia sem ruído das passeatas, contestações, debates, votações. A cidadania morta de medo não vive, jaz.

Viver é perigoso, dizia Guimarães Rosa nos sertões das Gerais há 60 anos. Cair do cavalo, ser apanhado pela peçonha da urutu, deparar com ladrões nas veredas. Corajoso, Manuelzão tinha medos. Todos temos. Porém, quando cadeiras nas calçadas, prosas e serenatas pelas madrugadas são reminiscências longínquas de um tempo em que não havia assaltos dentro dos ônibus urbanos e os homicídios eram passionais ou, se muito, "cachacionais", significa que o medo se tornou mais forte que a coragem e passou a acinzentar a vida. Viver, quando a coragem é oprimida pelo medo, é desgostoso.

Lutamos, entre os anos 60 e 90, para que a cidadania tivesse voz e pudesse expressar a alegria de viver. Vencemos uma ditadura e caímos em outra. O ladrão que ataca o aposentado que sacou o dinheiro no banco é tão tirano quanto os algozes que habitavam os porões da tortura nos anos 70. A vítima é transformada em objeto, mero meio para atingir a finalidade almejada pela pessoa violenta. À época se pugnava pelo direito à liberdade política; hoje, a luta é pelo direito a não ter medo.

Ao fazer campanha pacifista, insta especificar de qual paz se fala. Paz angelical, paradisíaca, na qual inexista medo, é devaneio incompatível com a condição humana. Óbvio, não se pretende a paz perpétua dos cemitérios. Paz dos fracos, paralisados e emudecidos pelos brutos, também não. Paz viva, vivaz, estrepitosa, ruidosa com os sons da alegria e tristeza que enchem o viver ordinário, comum, das pessoas que constituem família, batalham para botar pão na mesa. É dessa paz que se fala; dessa que se quer.

Todos têm direito a não ter medo na intensidade que inibe a voz. Direito e dever são pares lógicos; são a linguagem binária da convivência. O direito é exercido em relação a quem tem deveres a cumprir e esses, por sua vez, são adimplidos em relação a quem tem direitos. Quem deve adimplir a obrigação de garantir condições para vida sem medo paralisante? O poder público está no polo passivo dessa relação entre direito e obrigação. Os agentes públicos de todas as instituições, mas especialmente da Poder Executivo, têm a incumbência de assegurar as condições para serenatas, prosas no portão de casa na boca da noite, crianças brincando no jardim frontal do prédio.

Os emudecidos devem gritar para se fazer ouvir pelos políticos. A responsabilidade não é das vítimas e nem de difusa exploração social. O aparato público existe para garantir segurança suficiente à construção de convivência na qual as pessoas possam se sentar nos bancos de praça para conversar sem o altíssimo risco de serem roubadas. Paz sem convivência cívica é medo. Taramelas, cadeados, cercas eletrificadas, arames cortantes protegem o indivíduo e matam a civilidade. Paz com voz é cidadania.

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