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Duas pessoas, dois papéis, duas histórias, um ponto comum: ambos acusados de homicídios e, diante da iminência da extradição ao Estado patrial das vítimas, o Estado que poderia entregá-los negaceou. Posicionavam-se em extremos do espectro ideológico, mas o decurso do tempo mostrou que estavam mais próximos do que poderia supor sua vã filosofia. Certamente não se viam assim. O finado ditador chileno se imaginava o rochedo por onde os comunistas não passariam, e o militante italiano, o paladino dos fracos e oprimidos, com plena liberdade de meios em face do nobre fim do seu ativismo.

Pinochet, general-presidente-ditador do Chile entre 1973 e 1990, não matou com as próprias mãos, mas criou as condições políticas para que os lucíferes saíssem dos porões e infernizassem adversários ideológicos. Entre as vítimas fatais desses demônios libertados por Pinochet, algumas freiras espanholas. Já ex-ditador, mas ainda senador vitalício, Pinochet estava no Reino Unido para tratamento de saúde quando a Espanha pediu a sua extradição para julgamento da acusação de homicídio. O Judiciário britânico entendeu que a violência propiciada por Pinochet não estava protegida pela manto da imunidade da condição de chefe de Estado e também entendeu que a tortura e morte não são crimes políticos, e deferiu a extradição. Ocorre que o primeiro-ministro (chefe de governo) negou a entrega sob o fundamento da debilitada saúde de Pinochet. Esse imbróglio durou quase dois anos e findou com o "milagre" de Pinochet, no aeroporto de Santiago, levantando-se da cadeira de rodas e caminhando pela pista, vindo a falecer seis anos depois.

Battisti foi julgado e condenado por quatro homicídios praticados na Itália entre junho de 1978 e abril de 1979; em dois deles o próprio Cesare Battisti puxou o gatilho. As vítimas: um carcereiro, dois comerciantes que haviam resistido a roubos praticados pelo grupo de Battisti e um policial que identificou os autores do roubo. Mortes deliberadas no comitê do partido político de Battisti e executadas depois de algum tempo. Em outras palavras, não foi violência ocorrida no calor da ação; houve frieza e desapreço pela vida. Preso, Battisti fugiu e se tornou revel. As mortes imputadas a Pinochet não foram consideradas crimes políticos. As de Battisti devem sê-lo?

Roberto Da Matta, ao falar da luta como papel, alude ao axioma de Shakespeare segundo o qual somos atores no palco do mundo: o viúvo é pesaroso, o carnavalesco é alegre, o estudante é concentrado, ainda que sejam a mesma pessoa. Se a ideia for extremada, ninguém será responsável por seus atos; Pinochet e Battisti seriam meros personagens no teatro da vida, encenados circunstancialmente por Augusto e Cesare. Porém há teatro na vida, mas viver não é teatro porque alegria e tristeza são vividas, não encenadas. A rigor, ao cumprir o papel de ditador e o de militante de alguma ideologia se atua com carga idiossincrática que torna cada representação única, artesanal. Mais que isso, os indivíduos têm o poder de aceitar ou recusar os papéis que lhes calham ao longo da existência.

Vilão ou herói são adjetivações da plateia. Ninguém se imagina e compraz como vilão; todos pensam que são mocinhos, ainda que percebam alguns efeitos desagradáveis decorrentes da sua atuação. Todavia, há papéis insitamente difíceis, nos quais a possibilidade de liberação dos freios morais se torna mais presente, como os do cenário político. Nesse espaço, todos os papéis são de mocinho e quase todas as interpretações, dissimulada vilania. Pinochet e Battisti se deixaram dominar pela personagem e foram mais cruéis que o script político pedia. Podiam ter interpretado seus papéis sem espalhar tanto sofrimento.

Qual o papel que nos cabe? Figurantes bestializados que assistem a atitude sinuosa, praticada no apagar das luzes do governo, da negativa da entrega de Battisti à Itália ao nuto de que a sua condição pessoal poderia ser agravada por causa do clamor público para que ele cumpra a pena de prisão. Não haveria mobilização política na Itália se desde o começo o Brasil tivesse agido conforme a lei, sem variantes ideo­­­­lógicas. Mas, ao que parece, Roma locuta, causa finita.

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