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A divisão ideológica do mundo em bloco capitalista e socialista, comandados pelos Estados Unidos e a União Soviética respectivamente, tornou a quartelada, o golpe de Estado, uma prática corrente no Terceiro Mundo. Militares sozinhos, ou aliançados com civis, tomaram de assalto muitos palácios presidenciais e parlamentos. Na América Latina esses acontecimentos nem rendiam manchete dos jornais. Políticos buscando proteção em países vizinhos se tornaram tão abundantes que o instituto do asilo diplomático e territorial se desenvolveu nesse ambiente. Não faz muito tempo, o presidente do Equador foi deposto, obteve asilo na embaixada brasileira e foi organizada uma operação aérea para trazê-lo para cá. Raul Cubas, ex-presidente do Paraguai se tornou frequentador de padaria em Camboriú e Curitiba. Lino Oviedo, menos afeito às liças domésticas de um asilado, fez comícios no Brasil e voltou ao Paraguai, onde ficou preso, candidatou-se a presidente e não foi eleito.

Depois de muitas peripécias, a maturidade política parecia ser um valor prezado por todos os atores relevantes no cenário político e, apesar das manifestações da perfeita idiotia latino-americana com as verberações enfáticas hasta la última gota de nuestra sangre, tinha-se a impressão de que caminhávamos para a consolidação da ideia de que o voto é o único caminho para o exercício legítimo do poder e que os partidos estão no poder não são o poder. Assim, o governo balança-mas-não-cai da Bolívia passou por situações difíceis, o Peru levou Fujimori a julgamento e só a Venezuela admitiu reeleições ilimitadas para a chefia do Executivo nacional. Essa marcha em direção a sensatez, pontilhada por pitadas de puerilidade, foi interrompida pela deposição forçada do presidente de Honduras, com todas as falas e cenas da tragicomédia quase esquecida.

Apesar dessa quartelada tosca, como as pretéritas o foram, a reação internacional está sendo surpreendente e, quiçá, se confirme a sensação de que houve tropeço e não funeral da democracia. Há motivos para essa expectativa. O fim da guerra fria retirou o ar de salvador da pátria que os golpistas assumiam; ninguém pode discursar dizendo que vai salvar o país do comunismo ou, d’outra banda, dizer que levará a classe operária ao paraíso, vencendo a exploração burguesa. A quebra da normalidade fica nua, expondo impudicamente os maus propósitos dos golpistas.

No caso de Honduras as tentativas de Manuel Zelaya de seguir os métodos e modos de Hugo Chávez é a explicação para a deposição. Explica, mas não justifica. Dá para entender o desconforto com um presidente da República que escolhe como referência um bufão construtor de pobreza econômica e institucional. Contudo, ainda assim, a solução violenta não se torna justa. As elites políticas, econômicas, ideológicas hondurenhas se uniram para enviá-lo ao exílio ameaçando-o com prisão; poderiam ter se articulado para derrotá-lo nas eleições. O atalho escolhido é, a longo prazo, mais oneroso que a via eleitoral, pois legitima iniciativas iguais no futuro e aí a confiança nas instituições, motor da prosperidade, desaparece. A cultura da democracia exige paciência e a percepção de que não há progresso moral de eleitores e eleitos; os eleitores não votam melhor a cada eleição, como se houvesse uma linha evolutiva no curso da história. O eleitorado vive seu momento como se fosse único e faz escolhas que parecem, a seus olhos, as acertadas para aquela conjuntura.

Se na democracia acontece a eleição de gente do quilate de Berlusconi, qual a vantagem que ela apresenta em relação aos outros modos de acesso ao poder? Basicamente, na democracia os políticos vão embora sem que haja violência. É um jogo no qual os derrotados dão entrevistas, reclamam do árbitro, afirmam que vencerão a próxima etapa, vão para casa e, às vezes, vencem a partida seguinte. A democracia é único modo civilizado para gerir a competição pelo objeto mais cobiçado da humanidade: o poder. A democracia é a moda.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP

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