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Ora, direis, um cadáver vivo...

Sim. É a ficção em­­pres­­tada ao título de uma crônica, com a finalidade de torná-la mais atrativa ao leitor. Mas, tem suas razões de ser. Ao final destas linhas sabereis o porquê. Um final irônico de um acontecimento que merece ser relatado, em vista de sua ingênua curiosidade.

No curso de Medicina, o primeiro ano letivo é inteiramente dedicado ao aprendizado e ensinamento da anatomia humana. Em suas maiores e menores propriedades. Somente no próprio corpo humano isto pode ser alcançado. No corpo vivo? Impossível. Como dilacerar um corpo humano vivo para ver como ele é? Só pode ser um morto, um cadáver.

A solução foi valer-se, a Facul­dade, do Instituto Médico Legal (IML) que libera para a mesma o corpo daqueles pobres abandonados que morreram e não foram procurados por ninguém. A instituição de ensino recebe-os e, num particular necrotério, conserva-os imersos, nus, num tanque com água e formol. Dali são tirados para as aulas e para estudo, voltando, depois, à sua "morada".

Os alunos mais estudiosos preferiam frequentar o necrotério da Faculdade à noite. Eram poucos e os cadáveres, que também eram poucos, satisfaziam as necessidades.

Eram dignos de apreço aqueles estudos noturnos, no porão do prédio da Praça Santos Andrade. Aqueles corpos sem vida eram respeitados, com nosso silêncio, como se ainda vivessem. Mas eram dilacerados necessariamente. Realizava-se ali o mistério da morte, ensinando os vivos como é a existência. Assim, aquela curiosa atividade ia pela noite a dentro, sem dar conta das trevas que reinavam lá fora.

Houve um tempo em que os cadáveres se tornaram escassos. O IML estava em dificuldades para satisfazer as demandas da Facul­dade. Isto repercutiu prejudicialmente para a turminha da noite, da qual eu fazia parte. Resolvemos, então, de modo inusitado e intempestivo, "comprar" um cadáver. Para uma tão estranha "compra" valemo-nos de um conluio entre o funcionário da Faculdade, zelador do necrotério, e seu colega do IML. Nunca o sentimento de propriedade foi tão estranho e original. Nunca, também, pode dizer-se que houve um relacionamento inter vivos, pois havia um morto envolvido no "negócio". Um morto so­­bre o qual nem sabíamos como foi em vida e para o qual não podíamos demonstrar nossa gratidão. Mas, sim, um carinho que se perdia no tempo.

Àquele tempo (já vai mais de meio século), vivia em Curitiba uma peculiar mulher, cinquentona e amorenada, que perambulava pelas ruas e dava-se ao vicio da embriaguez. Não era má pessoa e, por isso, todos perdoavam-lhe as estripulias e, até mesmo, ajudavam-na como podiam. Apeli­da­ram-na de "Balão".

Uma noite, aconteceu o inesperado. A errante mulher, encontrando a porta do necrotério aberta, adentrou-se parcimoniosamente no recinto. Nós, que já a conhecíamos, não demos muita importância à sua presença. Foi ela que criou o relacionamento, di­­zendo: "o que vocês estão fazendo ai?" Não houve resposta, pois não estávamos em nada mais interessados que pelo quê estávamos fazendo. Após algum tempo de silêncio, Balão surpreendeu-nos. Surpreendeu-nos, mesmo.

– Ah! Já sei o que é. Então, vocês não querem um cadáver vivo?

Todos olhamos, curiosos para a esquisita mulher, vendo-a bater, generosamente, no peito.

A estranha oferta valeu-nos como heróica dádiva que, como pode-se imaginar, não poderia ser aceita.

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