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1. Alguém poderia perguntar por que eu rezo antes das refeições. Afinal, não é um hábito muito comum em nossos tempos. Bem, rezo não apenas para agradecer a Deus pela refeição, o que já seria motivo mais do que suficiente, mas porque cada prato de comida contém dentro de si a história da humanidade. Dou graças pelas gerações de homens e mulheres cujo esforço permitiu que este prato estivesse hoje em minha mesa.

2. Caminhava pelas ruas pouco antes do Natal e vi alguma coisa caída na calçada. Como a minha vista vem ficando mais fraca nos últimos tempos, tive de me aproximar para ver o que era. Não era o quê; era quem. Uma mulher de idade indefinível. Perguntei seu nome. "Roseli." Disse-me três vezes que estava com fome antes que eu conseguisse entender. Quando voltei com a comida, ela havia sumido sem deixar vestígios – a não ser uma garrafa caída na sarjeta.

3. Em casa ninguém dormia sem dar boa-noite. Mas com Aracy havia uma frase adicional, que ela jamais esqueceu, mesmo quando eu já era um adulto de cabelos brancos. Boa noite, meu filho. Dorme com Deus. Pensando bem, não é uma simples frase. É um programa de vida, uma fórmula de sobrevivência, um roteiro para a a eternidade. Agora sou eu que digo todas as noites: Filho, dorme com Deus. É uma forma de ter Aracy ao meu lado outra vez.

4. Vou comprar uns envelopes na papelaria para enviar uma carta ao amigo Nilson Monteiro. O dono da loja recebe o pagamento e diz: "Penso sempre no seu pai". Pergunto o motivo. "Ele foi o homem mais educado que eu já conheci." Lá fora as nuvens anunciam chuva. Pelo celular, alguém me envia a seguinte mensagem: "Penso sempre na sua mãe. Ela foi minha melhor professora".

5. Depois de passar no correio, resolvo ir ao sebo. Do nada, penso que a guerra é o estado natural do ser humano, o verdadeiro nome do pecado original. Portanto, é a paz que deveria ser declarada, não a guerra. O estado mais comum não necessita de formalização.

6. Deus escuta minhas preces. Começa a chover forte e não posso sair de onde estou. Acontece que estou no sebo, onde encontro uma antologia de contos americanos que deveria ter lido há muito tempo.

7. Então percebo que a toalha da mesa onde escrevo esta crônica de sete faces foi bordada pela minha querida Vó Maria, minha segunda mãe. Declaro a paz – nem que seja por alguns instantes. Dorme com Deus, 2014.

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