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1. Sobrevivi a quatro anos e meio morando na República da Rua Humaitá, com uma dieta basicamente composta por miojo, ki-suco, bandejão do RU e cerveja em quantidades industriais. Vinho de garrafão, sanduíche da panqueca, churrascos na casa do Marcelo, bares infectos, banheiros impraticáveis, apartamentos caóticos, quintas sem lei, quartas cubanas, terças indies, domingos apocalípticos: o que não me mata me fortalece.

2. Sobrevivi a dormir no chão, dormir no sofá, dormir no balcão, pelo menos uma vez dormir na escada. A ressacas que nem mil Neosaldinas poderiam debelar. A um fim de semana em que terminei tocando violão em portunhol na Vila Nova. A viagens para festivais de teatro em Presidente Prudente e São José do Rio Preto, levando um livro do Sartre na mochila. A Sartre, Simone de Beauvoir e até Merleau-Ponty na fase stalinista. A uma sessão de análise junguiana. A um curso de somaterapia e autogestão em jornalismo, seja lá o que isso queira dizer. Perdi alguns pedaços, mas estou aqui.

3. Sobrevivi a paixões avassaladoras, a romances intermináveis, a homéricas brigas de ciúmes, a telefonemas de madrugada1, a reencontros explosivos. Mesmo quando eu tentava escapar, fantasmas amorosos reapareciam em sonhos. Confesso que não morri.

4. Sobrevivi a aulas na Faculdade de Filosofia da USP, e saí quase inteiro. A peças didáticas de Brecht, a traduções ruins de Freud, a entrevistas de José Saramago, a diários de Che Guevara, a discursos de Fidel Castro. Não bati com as botas, mesmo depois de ler Reich e Roberto Freire (o psicanalista, não o político, embora a este tenha sobrevivido também). Não comi capim pela raiz após uma overdose de Trotsky, Lênin, Bukharin, Gramsci e Isaac Deutscher. Inexplicavelmente, entrei em diversos edifícios projetados por Oscar Niemeyer e saí incólume – se não levarmos em conta uma ligeira indisposição gástrica.

5. Sobrevivi a filmes de Spike Lee, poemas marginais, poemas concretos, artigos de Emir Sader, As Veias Abertas da América Latina, uma peça teatral do MST. De shows do Skank e da Maria Gadú consegui ficar longe, mas teria sobrevivido, ainda que com alguns ferimentos no canal auditivo.

6. Sobrevivi a assembleia geral estudantil, a invasão de reitoria, a passeata de protesto, a reunião de sindicato, a análise de conjuntura, a discussão de data-base. Não saí de pauta.

7. Sobrevivi aos cavalos do Figueiredo, à inflação do Sarney, ao confisco do Collor, à reeleição do FHC, ao mensalão do Lula. Mas, apesar de ser tão duro de matar, acho que não sobrevivo a um segundo turno entre Dilma e Marina.

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