• Carregando...

A mais eficaz contestação é sempre a mais espontânea, não há melhor resposta aos absurdos que a lógica límpida dos fatos. Essa dialética natural comprova-se ao comparar o furor produzido pelo clipe anti-Maomé e a sua antítese imediata, a divulgação do teor de um fragmento de papiro do século 4 onde se revela a possível existência de um "Evangelho da Mulher de Jesus".

O clipe é estúpido, não ameaça os fundamentos do Alcorão, mas está provocando um terremoto no mundo islâmico. A tradução do pequeno texto divulgado pela Universidade de Harvard poderá revolucionar o que se convencionou designar como "Jesus histórico" e, eventualmente, questionar dogmas da teologia cristã.

Apesar do frisson, ninguém tentou vandalizar a mais antiga universidade norte-americana, nem atacar a pesquisadora Karen King, responsável pela pesquisa.

A insana reação de fanáticos islâmicos e a fleumática reação do mundo ocidental diante da possibilidade de ter existido uma discípula de Jesus compõem um panorama fascinante das percepções contemporâneas. Não há um choque de civilizações (como invocava o apocalíptico Samuel Huntington), mas uma assimetria iniciada há dois milênios em busca da convivência entre fé e razão.

Cerca de um século depois da morte do profeta Maomé – lapso irrisório em termos históricos –, os mouros já ocupavam grande parte da Península Ibérica e promoviam um formidável impulso cultural no sul da Europa. O Império Otomano irradiou-se do Oriente Médio à África do Norte e Europa Central, mas sua ruína tornou-se inevitável quando a habilidade política dos califas mostrou-se incapaz de gerar o mesmo dinamismo da Europa Ocidental. Perderam o bonde dos descobrimentos, da Renascença, do Iluminismo e da Revolução Industrial. Não se permitiram algo semelhante à Reforma, que sacudiu, conflagrou, mas também dinamizou o cristianismo ocidental a partir de 1517.

Aquele império multinacional, imenso, imóvel, manteve-se subjugado pela religião ao longo de quase um milênio e desmanchou-se no fim da Primeira Guerra Mundial. Os movimentos de modernização islâmicos que se seguiram, além da bandeira nacionalista, desfraldaram o banner do laicismo – a completa separação entre religião e Estado. Pretendiam recuperar o tempo perdido. Mustafá Kemal, o Ataturk, foi o primeiro e o mais bem-sucedido, ainda nos anos 20 do século passado. A Turquia de hoje é sua herdeira.

Nos anos 50, no Egito, os jovens oficiais liderados pelo general Nagib (e depois pelo coronel Gamal Nasser) derrubaram a monarquia e esmagaram a reação da Fraternidade Muçulmana, que se opunha ao secularismo. Pouco antes, surgira na Síria o Baath, partido da Renascença, eminentemente laico (socialista e pan-árabe), que se estendeu ao Iraque e no qual se destacaram Saddam Hussein e Hafez Assad (pai do ditador Bashar).

Yasser Arafat, nos anos 60, tirou o movimento de libertação da Palestina das mãos das lideranças religiosas e deu-lhe uma sustentação política (embora maculada pelo terrorismo), que persiste até hoje na Autoridade Palestina, igualmente laica, ao contrário dos radicais Hamas e Hezbollah.

A Primavera Árabe iniciou a derrubada de déspotas e o culto ao voto universal, mas esqueceu a disfunção central, o forte componente teocrático. O fundamentalismo ocidental, criado para combater o darwinismo no fim do século 19, sente-se livre para provocar novas exacerbações. A cruzada de blasfêmias não é o caminho para a convivência. Não é o que pregaria a suposta discípula de Jesus de Nazaré que agora despontou no fragmento de um papiro.

Alberto Dines é jornalista.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]