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A novela da votação do PLN 36/2014, que altera a lei orçamentária para permitir que o governo apresente um superávit primário menor que o previsto originalmente – ou até mesmo um déficit primário – sem incorrer em punição nenhuma, continuou ontem no Congresso Nacional. Mas nesse novo capítulo, que começou pela manhã e só terminou à noite, faltou um personagem fundamental: o cidadão brasileiro.

Na terça-feira, as galerias da Câmara dos Deputados foram ocupadas não por sindicalistas, pelo movimento estudantil, por sem-terra, sem-teto ou integrantes de outros movimentos aparelhados pelos partidos de esquerda, mas por diversos brasileiros (alguns, sim, ligados a partidos políticos, mas filiados são tão cidadãos quanto quaisquer outros) preocupados com a possível aprovação do PLN 36/2014, e que se manifestavam contra a manobra fiscal de Dilma Rousseff. A pedido da deputada do PCdoB Jandira Feghali – que alegou ter ouvido gritos de "vagabunda" dirigidos à senadora Vanessa Grazziotin, do mesmo partido; os manifestantes e outros parlamentares disseram que os gritos eram de "vai pra Cuba!" –, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado e do Congresso Nacional, suspendeu temporariamente a sessão e mandou que a polícia da Câmara e do Senado esvaziasse as galerias.

O que veio depois está registrado e documentado pela imprensa e em vídeos divulgados nas mídias sociais: um professor foi atingido por um taser e perdeu a consciência. Uma senhora quase octogenária levou uma gravata de um segurança, e uma rasteira de outro. O tumulto foi tanto que Calheiros acabou suspendendo definitivamente a sessão. Na manhã de quarta-feira, o presidente do Congresso adotou a tese do "todos são culpados até prova em contrário", e simplesmente vetou o acesso não apenas às galerias, mas ao próprio prédio do Congresso, deixando de fora dezenas de pessoas enquanto, no plenário, a sessão recomeçava. Pouquíssimos foram os que conseguiram entrar, como o cantor Lobão.

Com os debates reiniciados, a base aliada defendeu a ação de terça-feira das mais diversas formas: ainda durante os tumultos, o próprio Calheiros já havia acusado os manifestantes de serem "assalariados" pagos pela oposição; na manhã de quarta-feira, o petista Arlindo Chinaglia retomou o mote, perguntando "quanto vocês estão recebendo para estar aqui?" a um grupo que tentava entrar na Câmara. Alguns parlamentares reforçavam a versão de Jandira Feghali, enquanto o deputado Ivan Valente, do PSol, ironizou o fato de dezenas de pessoas terem se mobilizado por um assunto tão etéreo quanto a responsabilidade fiscal, alegando que normalmente as galerias são ocupadas por gente preocupada com assuntos mais concretos, como saúde e educação – como se o brasileiro médio fosse incapaz de entender o teor do golpe fiscal pretendido pelo Planalto, e suas consequências de curto, médio e longo prazo para a administração pública e a credibilidade do país. Até a presidente Dilma, em seu perfil no Facebook, compartilhou vídeo do petista Lindbergh Farias em que ele comparava os manifestantes à "UDN golpista" e falava em "ataque à democracia".

A incoerência é flagrante. Quando sem-terra tentaram invadir o Supremo Tribunal Federal, chegando a interromper uma sessão da corte, e romperam um cordão de isolamento em torno do Palácio do Planalto, ferindo PMs, o governo os recebeu para negociar. Quando brasileiros se manifestam nas galerias do Congresso contra a manobra fiscal de Dilma, seu aliado Calheiros os trata com truculência e, no dia seguinte, lhes proíbe a entrada antes mesmo que esboçassem qualquer atitude que poderia ser considerada inadequada, enquanto outros parlamentares praticam a habitual demonização de qualquer coisa que pareça oposição ao governo. Assim, demonstram que a "participação popular" louvada por certos partidos, na verdade, só é válida quando se trata daqueles grupos chancelados pelo governo.

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