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Da noite para o dia, o Brasil voltou os olhos para o bairro de Higienópolis, em São Paulo, fazendo dele o seu ringue, sua praça de guerra, seu BBB. Aos fatos: o anúncio de que uma das estações da linha do metrô seria construída numa esquina da famosa Avenida Angélica fez com que um grupo de moradores da classe A fosse às falas e dissesse "não e não". Motivo: a nova estação atrairia camelôs, ambulantes e, que infelicidade, a tal da "gente diferenciada", como se referiu um dos manifestantes aos usuários do transporte público que não gostaria de ver ciscando na área.

O bate-boca já deu que chega. Rendeu piadas contra judeus – mais valorizadas nas mídias sociais do que a fortuna amealhada por Antonio Palocci ou o escândalo sexual envolvendo o então dirigente do FMI Dominique Strauss-Kahn. E a instauração de uma nova forma de protesto: o churrasco de desagravo. Deve virar moda, como diz o escritor Antonio Prata, substituindo a queima de pneus e as passeatas.

Para além do folclore e das piadas de salão, no entanto, impera o fato martelado por arquitetos e urbanistas dos quatro costados: não haverá cidade nenhuma sem a convivência entre "diferenciados". É questão de saúde pública, como alertou, nos idos da década de 1960, Jane Jacobs no profético Morte e vida das grandes cidades, livro que mostrou como janelas, calçadas, espaços de convivência, entre outros, poderiam fazer de um espaço um lugar ou um não lugar. É sofisticado, mas autoexplicativo.

Observadores chamam atenção, por exemplo, para o mal que o mercado imobiliário tem feito a Nova York – a tal da "janela do mundo". Quanto mais aumentam os nichos de excelência para os graúdos, menos interessante a cidade se torna. A cultura e a criatividade ficam inibidas quando singles, casais jovens com filhos, magnatas e proletários não "contaminam" seus interesses, não se sentam no mesmo café nem frequentam a mesma lavanderia.

As cidades brasileiras vão mal no quesito, pois a ideia da diferenciação e exclusividade é por aqui uma bandeira branca, aumentando, por força da propaganda adolescente, os espaços vazios e os degradados. Brotam do chão bairros artificiais, sem relação com a rua, inspirados num ilusionismo típico de Los Angeles ou das capitais asiáticas. Por que não se inspirar em São Francisco?

Uma boa medida seria instituir o "índice padaria". Bairros que não suscitem um equipamento mínimo de sociabilidade receberiam um selo de alerta. O mesmo vale para os logradouros que não garantam a convivência entre os níveis sociais. É o que promove a sociedade portuguesa, por exemplo, com seus prédios de apartamentos de um, dois e três quartos no mesmo condomínio. É toda a gente em toda a parte – à moda Fernando Pessoa. O mesmo se diga da sociedade inglesa, não é de hoje, dada a sobrados e pequenos quintais à revelia de ter uma monarquia e um passado de fausto.

Esse debate, contudo, resiste em pegar fogo no país em que a interação social virou sinônimo de ameaça. Insiste-se que a proximidade traz a violência, quando todas as evidências mostram o contrário. Mas deve-se insistir: quanto mais variedade, mais gente na rua em horários diferentes, mais a rua é olhada e cuidada.

Não se pode dizer, de todo, que o poder público negligencie essa informação, como o fez em tempos idos. Já se sabe o quanto a política de guetos tende a ficar cara com o tempo, exigindo compensações insanas de policiamento, desmatamento de áreas verdes, arruamento, sem falar no temor de uma rebelião encabeçada por formadores de opinião. Viver junto é bem mais barato, reafirmando a hospitalidade como grande assunto do século 21.

Afinados com essas verdades, gestores afirmam – alguns em bom som – que é preciso garantir o sortimento em todo e qualquer lugar. É assim em São Paulo, a metrópole que amplifica todos os dilemas urbanos do tempo presente. O caso Higienópolis virou um show da vida. Afirmou-se ali que a cidade é de todos. Mas as cidades médias – justo as que mais crescem – precisam se alinhar a essa premissa democrática, capaz de lhes garantir alguma inovação. Não raro, no entanto, são as mais refratárias ao modelo sustentável, repetindo erros do passado.

Eis a questão. Como declarou o cientista político Parag Khanna – ex-assessor de Barack Obama –, em Curitiba, nesta semana, durante a segunda edição do ciclo Cidades Inovadoras, "a urbe é lugar do experimento". E não há experimento maior do que garantir a proximidade, quebrando a lógica do arquipélago, que tira da cidade o que lhe é próprio.

Os participantes do encontro não pouparam elogios à cidade – identificada pelo transporte público em canaletas e pela política de parques. Quiçá, numa próxima, possam visitar bairros como o Umbará e o Rebouças. O primeiro é uma relíquia do passado. Está na mira do mercado, do patrimônio, do movimento sem-teto. Terá de equacionar esses três grupos. Quanto ao Rebouças – antiga zona industrial – merece como poucos o nome de laboratório.

O bairro soma uma pá de expectativas: a de ser um SoHo, um tecnoparque, o de ser habitado para atrair gente em roda do Centro, a de deixar de ser um mero corredor de passagem, a de atrair gente inteligente e criativa a suas ruelas de paralelepípedos. Com tanto a fazer, está à mercê de qualquer vontade. Pensando bem – o assunto vale um churrasco entre todas as gentes, numa esquina da Rua João Negrão. A combinar.

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