• Carregando...

O ex-prefeito de Bogotá Henrique Peñalosa tem uma fala que costuma arrancar gargalhadas das plateias que o prestigiam aos quatro ventos. O homem que de 1998 a 2001 ajudou a redimir a combalida capital colombiana dos efeitos do narcotráfico e da economia cambaleante diz que o melhor instrumento de gestão urbana que existe é a cadeira de rodas. Ela mesma.

Aos maus entendedores e mentes preguiçosas, oferece um exemplo de bê-á-bá: se pudesse, amarraria os secretários de Planejamento numa dessas cadeiras e os obrigaria a circular pelas cidades pelas quais são responsáveis. É o que basta. Depois da experiência, garante, esses sujeitos saberiam com certeza o que priorizar em suas administrações.

A imagem algo absurda usada por Peñalosa esconde uma das mais sólidas verdades cultivadas pelos urbanistas de fina cepa, como o dinamarquês Jan Gehl: cidade bem planejada é aquele que consegue atender às necessidades das pessoas mais vulneráveis – dos cadeirantes aos idosos, passando pelas crianças e pobres, chegando aos ciclistas.

As recentes tragédias provocadas pelas chuvas no Rio de Janeiro mostram que Peñalosa, Gehl e outros mestres, ao falarem de miudezas, estão no mais perfeito juízo. Aplicada a máxima da vulnerabilidade, não iniciaríamos 2011 com o saldo de 800 mortos por catástrofes cinicamente chamadas de "naturais". O que um e outro dizem sobre acessibilidade é pura ciência. Na base de tudo está a cidade em que se pode de fato bem viver.

O conceito de "cuidado", assim como o de "hospitalidade" – nos moldes do proposto por filósofos como Derrida e Anne Dufourmantelle –, enfrenta dura resistência, posto que leva rasteiras inclementes do individualismo, cultura que vicejou com a morte das grandes ideologias. De modo que mudanças no atual estado das coisas passam por políticas públicas eficientes, mas será pouco se não houver uma revolução nas mentalidades. Está aí um produto que não se encontra à venda no shopping.

Vale citar recente pesquisa divulgada por ocasião do aniversário de São Paulo – a metrópole de 457 anos. Seus moradores estão mais ocupados com amores e su­­cessos do que em dividir com a urbe os saberes adquiridos. Ora, essa postura refratária não é apenas um atentado à sociedade do conhecimento, é a negação da cidade, tal como foi pensada na modernidade.

A resposta de pronto a esse impasse está na educação, mas não se pode esperar que mais umas tantas gerações passem por boas escolas para que haja, enfim, cidades sustentáveis. É preciso correr. E correr com a determinação de quem persegue o último ônibus numa madrugada de vendaval.

Um dos entraves à consolidação dessa urbe colaborativa e bem cuidada está na própria administração pública, incapaz de responder às necessidades dos anos 2000. Em seu livro Primeira lição de urbanismo, o pesquisador italiano Bernardo Secchi chama atenção para essa verdade inconveniente. As cidades se tornaram palco de inúmeras dinâmicas de trabalho e de convivência, mas para uma leva de urbanistas é como se o mundo tivesse estacionado no pré-Primeira Guerra Mundial, quando a vida ainda girava em torno da fábrica e das igrejas.

Em miúdos, fica difícil ao cidadão comum cuidar e se doar a espaços que lhe são duras penas, não atendendo às necessidades de trabalho, lazer, convivência e consumo. No mais, as cidades se tornaram espaços superficiais, o que piora o resultado. Como diz Secchi, foram-se os espaços sólidos, como quartéis, centros históricos, portos, ferrovias e indústrias. E imperam lugares aos quais se vai de carro, de forma ligeira. Os novos sítios urbanos mudam ao sabor do vento, graças a uma arquitetura areada. Custa-nos desenvolver o afeto e a memória. Resta saber o que a palavra cidade significa para uma pá de gente.

Não é o juízo final, obviamente. Para serem amadas e cuidadas, cidades precisam formar novos pactos de cidadania com seus moradores. A fala é do matemático Antanas Mockus, ao lado de Peñalosa outro urbanista que reinventou Bogotá. Reza a lenda que o originalíssimo Antanas gastou pouco para reerguer a capital. Sua opção foi aumentar os espaços públicos de qualidade, ligados por ciclovias. Uma de suas máximas corre o mundo: quanto mais ciclistas na rua, mais segura é uma cidade. Mal não faria se os gestores brasileiros dessem uma voltinha não só de cadeira de rodas, mas também de bicicleta.

Em tempo. A situação é de tirar o sono. Estima-se que 1 bilhão de pessoas no mundo morem em favelas. Favelados podem chegar a metade da população do planeta em 15 anos Sabe-se lá como, pois é preciso água, esgoto, transporte, escola e saúde para toda a gente. Mais: estudos da ONU estimam que 75% do planeta vai morar em cidades em 2050. Neste mesmo ano, Mumbai vai ultrapassar Tóquio e se tornar a maior cidade do mundo, com 40 milhões de habitantes.

Difícil um urbanista que não tenha uma receita na ponta da língua. Fala-se em educar o mercado imobiliário, fazendo vingar o direito à habitação. Há gente como a professora de Harvard Rosabeth Kanter, entusiasta do conceito de "cidade inteligente", aquela em que cultura, educação, saúde, lazer, esportes e trabalho são integrados pelas tecnologias de comunicação.

Mockus, dado à simplicidade, diz que uma boa pesquisa resolve – que se pergunte à população o que ela gosta na cidade em que mora. O que o povo disser deve ser potencializado. Esse lugar, garante, será muito bem cuidado. Que tal?

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]