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Os professores de escolas públicas e privadas do país estão em estágio probatório. Não, não se trata de uma nova avaliação dos governos, pressão do mundo corporativo ou coisa que valha, mas de um teste de resistência e raciocínio para responder às investidas do mundo da violência – cada vez mais em roda do quadro negro e do pátio do colégio.

Eram favas contadas que o avanço do crime organizado atingiria em cheio as instituições de ensino – potenciais celeiros de recrutas e de consumidores. Escolas viraram o endereço onde o crime bate ponto, à revelia do silêncio estatístico a que o assunto parece fadado. Mas não é o único mal a esmagar, qual a cabeça do dragão. A "sociedade da violência" não se resume ao tráfico e a seus chefões com pinta de vilão de histórias de quadrinhos – ainda que muitos gestores acreditem nisso piamente.

A crise de valores, a desagregação da família, o consumismo sem peias e o pouco-caso diante das mazelas sociais afetam as salas de aula tanto mais do que as bocas-de-fumo do quarteirão. Antes da facção criminosa, há um mal de raiz. Como declarou o veterano escritor israelense Amós Oz – com a autoridade de quem nasceu e cresceu numa zona de conflito –, a grande crise é a crise de alteridade. "Imaginar o outro é um dos remédios para o fanatismo. Os fanáticos nunca imaginam o outro" – diz o mágico Oz, para bons entendedores.

A cultura narcisista – vale repetir – troca farpas com a educação, pois só faz sabotar os convites à convivência e à partilha, tão naturais à escola quanto a tabuada e a Mirabel com Toddy na hora do recreio. Os ataques verbais e físicos a professores e a animosidade entre alunos são reflexo da incapacidade de viver junto e do desprestígio do saber.

Deve-se considerar que a transformação do espaço da educação em campo de batalha é um agravamento histórico. Já se viu esse filme antes. O ensino sempre ocupou o segundo plano no cenário nacional. O primeiro projeto de escola era civilizatório – surgiu para cristianizar índios. Podia ser legítimo naquele momento, mas para a vida como ela é restou a ideia de que a educação tem a função de um reformatório – de que é um cabresto moral.

O conhecimento também era visto como coisa para padres – o que causava impressão em viajantes estrangeiros, que se deparavam com uma população de poucas letras e, por tabela, com uma sociedade sem livros, orgulhosa da pujança econômica, mas pedestre no pensamento, como se não tivesse a ver alhos com bugalhos.

Pudera. Para a população em geral, a escola era um agrado do estado, que a gerenciava com sobras, o que explica o quadro de mendicância crônico da educação brasileira. O que vemos, ouvimos e contabilizamos é herança. Escolas públicas são construídas com material de baixa qualidade, disfuncionais e, agora, seguem a estética cubano-soviética: são todas iguais, como se fossem iguais todas as comunidades e todos os alunos. O tratamento a professores e alunos seguiu a mesma lógica.

Mesmo entre os que, em tempos idos, estudaram movidos por uma mentalidade liberal, a educação não redundava em benefícios nação, mas em um regalo para os lares abastados. Para piorar, comumente gostar de estudar era confundido com esquisitice ou tendência à subversão. Por essas bandas, letras sempre foram sinal de perigo – haja vista a acusação que pesou sobre Tiradentes: a de ter sido visto comprando livros.

São raros os dirigentes do circuito do capital e da política que vieram dos círculos eruditos, o que faz da nossa elite econômica uma das menos intelectualizadas do mundo. Perdeu a ciência e a educação, que conquistaram tão poucos benfeitores nas altas esferas.Tristes trópicos.

Com o agravamento da violência no século 21, a situação algo frágil da escola abilolou de vez. O aluno que maltrata o professor e despreza o conhecimento é perpetuador desse carma histórico em que nos metemos desde os tempos da colônia. Para os professores é um purgatório sem fim. Não bastasse ainda serem confundidos com sacerdotes, cabe-lhes, em tempo recorde, impedir que a escola seja engolida pelas mazelas da rua. Equivale a um salto de paraquedas. Onde fica mesmo a cordinha?

Entre os muros

Os mestres – num exercício de vastas emoções e pensamentos imperfeitos – dão nós em pingos d’água. Aqui e ali pipocam experiências de escolas que transformam a pichação em grafite, rap em mensagem, tragédias em teatro na hora do intervalo. Esse cardápio serve de "prefácio interessantíssimo" para o próximo passo – ao mesmo tempo em que luta para não ser devorada pela rua a escola tem de entender o que acontece do lado de fora. Uma maratona e tanto. O excelente filme Entre os muros da escola, baseado em livro de François Bégaudeau e dirigido por Laurent Cantet, é um exemplo disso. A trama – em cartaz nos cinemas – se passa numa periferia multiétnica de Paris, mas poderia ser no Boqueirão ou no Uberaba.

O tempo todo o professor vivido pelo próprio Bégaudeau se depara com o insulto, a má-criação e até com a baixaria total. Mas seu maior problema é sempre de linguagem – bate-se para falar e ser entendido. E uma vez entendido, não sabe como ser interessante para uma rapaziada que vive tempos difíceis. "Eu não entendi nada", confessa uma aluna a um professor incréu. "Eu li A República, de Platão. Não é livro de vagabunda", deixa-o pasmo uma outra. "Leu mesmo?" De todas as provas, a de acreditar ainda é a mais difícil, seja lá o que acreditar signifique.

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