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Editorial

A guerra na Ucrânia e a ameaça nuclear

Veículo lançador de míssil balístico intercontinental Topol é exposto em feira nos arredores de Moscou, em agosto de 2022. (Foto: Maxim Shipenkov/EFE/EPA)

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No sábado, dia 8, a resistência ucraniana à invasão russa obteve um novo sucesso significativo ao inutilizar a Ponte Kerch, ou Ponte da Crimeia, única ligação terrestre entre o território russo e a península da Crimeia, ilegalmente anexada pela Rússia em 2014. A ponte vinha sendo usada para abastecer tropas russas na Crimeia e no sul da Ucrânia, o que já evidencia a mentira de Vladimir Putin quando classificou o ataque como “um ato de terrorismo destinado a destruir infraestrutura civil” – afinal, se a ponte era usada para o transporte de tropas e suprimentos, torna-se alvo legítimo dos ucranianos, e sua destruição é um ato de guerra, não de terrorismo.

Em resposta, Putin ordenou ataques de mísseis contra várias cidades ucranianas, inclusive algumas distantes das linhas de frente do conflito, como a capital Kiev e Lviv, no oeste da Ucrânia. Embora a Rússia afirme estar alvejando apenas instalações de infraestrutura, a retaliação também atingiu estruturas como universidades, matando ao menos uma dezena de civis. A escalada russa foi criticada pelas Nações Unidas e até mesmo por aliados de Putin, ou de países que vêm se mantendo neutros, como Índia e China; mesmo assim, o russo manteve os ataques – na quinta-feira, mais de 40 cidades ucranianas foram alvos da Rússia, mostrando que sua intenção é a de aterrorizar a população ucraniana.

Ao se tornar vítima de um ataque nuclear, a Ucrânia teria legitimidade para promover uma retaliação da forma que considerasse mais adequada e usando os meios que tiver à disposição

Essa disposição, aliada a decisões como a de promover a general um líder checheno favorável ao uso de armas nucleares na Ucrânia, nos leva a uma hipótese bastante problemática: e se as ameaças anteriores feitas por Putin não forem um blefe? E se o autocrata russo, vendo suas forças enfiadas em um atoleiro semelhante ao que fora o Afeganistão nos tempos soviéticos, partir para o impensável e ordenar um ataque nuclear – ainda que usando bombas de menor intensidade, e sem ter como alvo um grande centro urbano – contra a Ucrânia?

A Ucrânia já não tem meios de dissuasão; o país abriu mão de suas armas nucleares pelo Memorando de Budapeste, assinado em 1994 com Estados Unidos, Reino Unido e Rússia, após o fim da União Soviética. Putin, é verdade, não cumpriu a parte russa no acordo, já que a Ucrânia concordara em entregar suas ogivas à Rússia recebendo como contrapartida a garantia de que as outras nações iriam “respeitar a independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia” e “abster-se da ameaça ou do uso da força”, o que não ocorreu. Mesmo assim, um rearmamento nuclear da Ucrânia, agora, é um cenário improvável; não veremos na Europa Oriental um impasse semelhante ao que ocorre hoje entre Índia e Paquistão, em que nenhum dos dois países é suficientemente insano para dar o primeiro passo no que levaria à destruição mútua.

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A porta, assim, está aberta à possibilidade de uma agressão nuclear russa. Não fazer absolutamente nada em resposta seria enviar a Putin a mensagem de que sua estratégia está legitimada. Mas, então, qual seria a melhor reação? Uma comunidade internacional unida, e que tivesse consciência de que essa é uma linha que não pode ser cruzada de forma alguma, isolaria a Rússia de uma forma drástica, por exemplo cortando todos os laços comerciais, mas, nas condições atuais, é quase impossível que algo assim ocorra. Restaria a via militar para conter Putin, mas qualquer ação, ainda que usando armas convencionais, que viesse da Otan teria o potencial de lançar o mundo na Terceira Guerra Mundial, especialmente se visasse território russo. A Ucrânia, no entanto, ao se tornar vítima de um ataque nuclear, teria legitimidade para promover uma retaliação da forma que considerasse mais adequada e usando os meios que tiver à disposição.

Ainda antes do ataque ucraniano à Ponte Kerch, o presidente norte-americano, Joe Biden, já havia alertado para o risco nuclear atual, que só encontraria comparação na Crise dos Mísseis de 1962. Ainda há tempo de evitar que o risco se torne realidade, mas isso exige uma dose gigantesca de pragmatismo. O fluxo de recursos e armamento aos ucranianos tem de ser intensificado, incluindo os meios, se possível, de prevenir uma agressão nuclear. Os serviços de inteligência ocidentais precisam estar ainda mais atentos, cooperando com a Ucrânia e alertando Kiev para qualquer movimento suspeito de Moscou. Si vis pacem, para bellum, diz o adágio latino: desejar a paz implica estar preparado para a guerra, e isso inclui ter a capacidade de responder ao pior dos cenários. Do contrário, a ordem internacional ficará a cargo dos valentões, inclusive daqueles que hoje parecem contidos, mas no fundo estão apenas aguardando um sinal para levarem adiante os próprios planos imperialistas.

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