• Carregando...

A morte de Cleonice Ferreira Gouveia, 29 anos, vítima de queda do Ligeirinho em Araucária, na última quarta-feira, já se tornou um símbolo do sentimento da população em relação ao transporte coletivo em Curitiba e região metropolitana. Pudera. Diante da notícia, qualquer um que já tenha tomado um ônibus lotado ou experimentado as turbulências dos biarticulados se coloca de imediato no lugar dessa passageira da agonia. Ela somos nós ontem pela manhã ou amanhã no final do expediente, o que explica a comoção e a indignação diante da tragédia.

Não é tudo. O "caso Cleonice" tem o poder de dimensionar o que já se diz a torto e a direito nas longas filas dos terminais: a frota é insuficiente, a tarifa um escândalo, o espreme-espreme faz com que os usuários se sintam numa máquina de moer carne. Gado, não gente. Basta puxar conversa com um popular – é o que eles dizem. O saldo é que de uns tempos para cá, a auto-estima do curitibano e vizinhos foi lesada. De orgulhosos do mais bem-sucedido sistema de transporte do país passaram a queixosos de plantão, assemelhando-se a usuários dos trens da Central do Brasil.

Como se diz nesses casos, quiçá o ocorrido com essa trabalhadora modesta, moradora da periferia, mãe de duas filhas pequenas, sirva de impulso a um debate sobre o sistema de ônibus na capital e cidades-polo. Mas não se trata de um debate que se possa fazer com um megafone na praça, gritos de guerra e panfletos ao vento. Há muito o transporte coletivo deixou de ser uma reivindicação popular – no sentido mais restrito do termo. Basta pensar no seu desempenho em lugares como Londres ou Paris, onde não são apenas admiráveis, são um marco civilizatório. O trânsito, mais do que nunca, é metáfora do tipo de cidade que somos e do tipo de cidade que queremos. Observá-lo é como se olhar no espelho. Eis a questão.

Não causa espanto que em certos setores do poder público se insista em reduzir o assunto a um embate meramente técnico, uma questão de logística, relativizando o impacto do que se vê. Não se resolve, contudo, o sucateamento do transporte apenas com medidas tecnocratas – ainda que não se possa abrir mão delas. O ônibus, mais do que um equipamento necessário, traduz um modelo de convivência social. Se o coletivo não fizer jus ao nome que carrega não deve ser bom o lugar em que ele se desenvolve.

Essa afirmação pode soar radical, extremista. Por certo, as metrópoles se tornaram complexas o bastante para terem em um dos seus serviços a medida de todos os outros. E é bem provável que exista alguma administração pública que tenha avançado na saúde e na educação, por exemplo, e patine na hora de resolver a difícil equação que envolve trânsito, sinalização, horários de pico, cronogramas e afins. Mas ainda assim, o transporte se firma como metáfora. Mesmo que seja possível garantir o "direito à cidade" – para usar a expressão de Henri Lefebvre – por tantos outros meios, é possível afirmar que a garantia da mobilidade no trânsito se confunde a outra sem a qual nenhuma existe – a da igualdade.

A pesquisadora argentina Beatriz Sarlo, autora do livro Tempo Presente, entre outros nos quais se dedica a desvendar a decadência das cidades contemporâneas, afirma que o fim da metrópole começa quando essas deixam de ser espaços orgânicos e igualitários. A cada muralha que se levanta, seja um shopping ou um condomínio fechado, trai-se o sentido do urbano. A escola, a praça, o hospital públicos – entre outros equipamentos modernos citados por Sarlo – podem não amenizar o efeito da sociedade de classes, mas nasceram para permitir que pessoas dos mais diversos níveis sociais tivessem acesso às mesmas oportunidades.

O mesmo se diga do transporte. Quando não é um elemento comum a ricos e pobres, torna-se reduto de uma única categoria. Logo, desinteressante e segregado. É disso que se está falando quando se pensa o transporte público para além do tamanho da frota ou da rapidez em cumprir percursos. Desse ponto de vista, um ônibus não serve apenas para levar passageiros, mas para conduzi-los ao espaço público e revelar-lhes a possibilidade de estar junto. O contrário disso atende pelo nome de barbárie.

A grande ausência nas roletas é a classe média, que prefere a comodidade dos carros individuais. Sem ela a bordo, os coletivos deixam de ser expressão da variedade urbana, inaugurando a anticidade. Os mais abonados "dizem" com sua recusa em andar de ônibus que não fazem parte daquele mundo, legitimando uma espécie de apartheid das roletas, cujos efeitos incidem sobre todo o resto.

Resta uma saída: reconstituir o transporte coletivo como tema. É preciso torná-lo tão popular quanto o futebol ou o carnaval. Para tanto, tem-se de mobilizar universidades e empresas, a imprensa e as escolas, de modo a afirmar em todos os redutos que não haverá salvação para a cidade se não houver ônibus para todos. Se assim for, fica provado que ainda é possível estar junto. Essa é a utopia dos anos 2000. E não se tem notícia de algum tempo que tenha conseguido viver sem uma.

Em tempo

São raras as estatísticas sobre acidentes de passageiros em ônibus. Sabe-se que fichas de atendimento nos pronto-socorros, com exceção do Hospital do Trabalhador, informam pouco sobre a tipologia de trauma. Outra particularidade é que os índices de acidente contemplam cada município ou o estado inteiro, quando deveriam considerar as regiões metropolitanas – onde há sistema integrado de transporte – como um todo.

De acordo com o site do Detran, em 2007 foram registrados 1.819 acidentes com vítimas envolvendo ônibus no Paraná. Os casos envolvendo bicicletas representam o dobro disso. O próprio número de conduções teve um crescimento medíocre: aumentou 4,5% em 2007 enquanto a frota de carros, no mesmo período, subiu 8,8%. Explica muita coisa.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]