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Não faltam diagnósticos sobre as relações problemáticas dos brasileiros com o espaço público. Já fomos alfabetizados em nossas mazelas. Resta-nos agora uma política mais agressiva, capaz de passar do debate para um novo "processo civilizatório"

A imagem algo corriqueira dos pais que pedem para o filho atirar uma lata de refrigerante pela janela do carro, "para que não suje o veículo", é um símbolo. Um símbolo tão brasileiro quanto nossa simpatia, hospitalidade e espírito de confraternização. No imaginário nacional, o espaço público ainda é o depósito das coisas que não queremos mais, simplesmente porque, grosso modo, o espaço público para nós não existe.

É grave, um mal de nascença de cura difícil. A tomar pelo que dizem os antropólogos, as estruturas culturais são as que mais resistem. Alteram-se a economia, a política, mas não os costumes. As práticas simbólicas e as redes de significados fazem com que uma microcomunidade seja única e original. A partir desse dogma, pode-se dizer que ainda somos determinados pelas concepções confusas que nos formaram no Brasíl Colônia. Nós nos criamos órfãos da ideia de nação, exilados do conceito de público e privado.

É questão cara aos sociólogos que se puseram a explicar a formação brasileira. Os teoremas passam pela obra de Gilberto Freyre (em seu Casa grande e senzala), por Sérgio Buarque de Hollanda (com Raízes do Brasil), e desembocam nas brilhantes conclusões de Roberto DaMatta, autor de obras como A casa e a rua, quase uma HQ de nossa sociabilidade matreira.

Nossa formação paroquiana, somada a uma democracia frágil, marcada por relações hierárquicas ilegítimas – para citar três pequenos dramas de nossa tragédia –, se encarregaram, a cada camada do tempo, de acirrar nossos maus bofes com o espaço público. Ele serve aos rituais do poder, sendo abandonado, logo em seguida, aos deserdados. O preço dessa lógica de uso e abuso é a descrença de que o processo civilizatório precisa se refletir, de forma concreta, no espaço físico, o espaço comum, palco das práticas democráticas.

A relação encruada dos habitantes do Novo Mundo com o espaço público – e com que ele representa –, vale dizer, se presta a uns tantos ensaios. Vai além de Freyre. Além de DaMatta. Há mesmo quem diga que somos vítimas da exuberância tropical, tal como expressou Tomás Alea Gutiérrez em seu magnífico filme Memórias do subdesenvolvimento. O que é belo pela manhã ao fim do dia já amadureceu e apodreceu, por força do calor e do ímpeto da natureza. Assim seriam também os nossos valores, vulneráveis como uma fruta exposta às altas temperaturas.

Mal não faz, no entanto, pensar o embate do espaço público no Brasil no contexto mundial. Há um mal-estar geral. Autores como Robert Putnam e Richard Sennett estão entre os que desnudam essa nova ordem e revelam, sem meios tons, que não estamos tão longe quanto pensávamos de preocupações que pareciam enterradas nas primeiras décadas do século, quando a Escola de Chicago se pôs a explicar o comportamento dos imigrantes que lotavam os Estados Unidos. Seremos engolidos pelo espaço privado, sem saída e sem redenção coletiva, como se temia acontecer com irlandeses e poloneses de outrora?

A "crise civilizatória", dizem os autores, passa pelo entendimento de que a cidade é lugar de diferentes lealdades. O preceito é aristotélico – se fossem todos semelhantes, os homens não formariam o mundo. O espaço público, nesse raciocínio, se restabelece pelo pacto das diferenças. É simples, elementar e profundamente humano pensar assim: a contemporaneidade só se resolve na cooperação. Havendo liames entre os cidadãos, renasce a cidade e o espaço público.

Sennett vai mais além – diz que só compreende a si mesmo quem se dispõe a fazer parte. E fazer parte é uma habilidade. Habilidade é política, em especial num tempo que não incentiva muito a cooperação. Ponto para as experiências que buscam reconquistar o espaço público, seja uma praça, um bosque, uma associação. É paradoxal, reconheça-se. Há 50 anos, em pleno pós-guerra, discutia-se o Vietnã, lá longe. Hoje, discute-se o quarteirão e a esquina. É ali que começa o mundo. Em resumo, parece ser isso que o debate sobre a coisa pública quer nos lembrar. É um bom recomeço.

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