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Coletivos de arte se espalharam pelo país e ajudam a formar o "poder jovem" dos anos 2000

Ainda é cedo para avaliar a "primavera paulistana", com suas perdas e ganhos. A depender do desfecho dos protestos, aumento de tarifa e ônibus nunca mais serão como antes. Mas já se pode dizer, com alguma dose de segurança, que jovens envolvidos em movimentos culturais encontraram um canal para fazer política – como há muito não se via. Param o bonde, se preciso for. Eles fazem parte dos últimos acontecimentos na Pauliceia Desvairada. Ninguém há de duvidar. O delírio das ruas o comprova.

Chega a ser curioso. No fim do século 19, o mundo da cultura fez questão de assinar seu divórcio da política e da ética. Ser um homem e uma mulher próximo da arte implicava flertar com a amoralidade. Desdenhar dos partidos. Envolver-se com as brigas renhidas pelos direitos humanos, para logo em seguida se pôr do outro lado, realizando assim o destino da arte – o de contrariar. Era, entendia-se, o único modo de existir sem se render.

A questão é bastante cara para analistas da cultura, como Terry Eagleton, Raymond Williams e Edward Said. Esses e outros autores passearam, num misto de perplexidade e desconforto, pelos descaminhos da chamada "arte pela arte" e seu paladar infinito para mirar o abismo, tirando da náusea e da tontura sua matéria-prima. O preço, diz Eagleton, foi o alijamento dos artistas e intelectuais dos grandes debates da modernidade. Vistos como exóticos, ficaram relegados a "vozes interessantes", mas não necessariamente a participantes da conversa. Deixaram de ser levados a sério. Repare: é raro procurar um escritor ou um ator para falar de uma tragédia da natureza ou de um golpe de Estado. Mas seria desejável que isso acontecesse, pois a arte os aproxima dos grandes embates humanos.

Sem os artistas à mesa de debates, mais próximos ficamos de um mundo frio e tecnocrático. Mesmo assim, novamente recorrendo a Eagleton, a cultura não tira o sono de nenhum membro do Banco Mundial. Além do mais, trata-se de um debate cercado de tensão. Ao longo do século 20, muitas ondas surgiram para alardear o papel transformador da arte e sua tarefa de implantar o mundo novo, retirando-a do "mundo à parte". Esses movimentos não tardaram a serem acusados de panfletários, de artesanato, de repetição, de manipulação da esquerda – e não se pode negar que há um fundo de verdade nisso.

Na vida brasileira, há uma expectativa oceânica de que a cultura seja engajada na defesa do país, o que relega as práticas artísticas a um lugar funcional. Algo como um móvel bonito na sala. Mas cultura não é, a rigor, afirmação de nacionalidade. Nesse sentido, melhor ser apolítica. Do contrário, perde a sua capacidade estética. É assunto para uma vida.

A última década, pelo que parece, ficará marcada como aquela em que a cultura elaborada, a política e a ética deram de andar de braço dado, como se nada tivesse acontecido nos últimos cem anos. Pululam aqui e ali grupos que nasceram como oficinas e ateliês de arte e que se convertem em coletivos. Das hordas das artes visuais, do teatro e da música saltam, com facilidade, para a discussão sobre a mobilidade urbana, meio ambiente ou mesmo segurança pública. A cultura os ajudou a conquistar a rua e a acreditar numa sociedade orgânica, na qual o lé tem a ver com o cré. Detratores à parte, tem-se um grande momento.

Não se trata de uma cruzada ingênua, é verdade. A cultura se tornou um dos motores da economia mundial, o que concorre para sua respeitabilidade. Também se tornou um campo vasto de estudo, além de alvo de políticas públicas. Vista pela ótica da antropologia, da sociologia, do urbanismo, passou a ser entendida como um fenômeno. O risco é achar que toda arte, sendo bem intencionada, é válida. Nesse cenário, o que importa dizer é que a cultura voltou a ser entendida como instrumento de luta ideológica, como explora o pesquisador Teixeira Coelho em alguns de seus ensaios. Diante da falência dos partidos, das moralidades, da vida cívica, a relação criativa com o mundo ganha o status de equipamento de luta e de resistência. Ser culto não implica ser erudito, mas ser participante, numa quebra com o paradigma da liberdade estética absoluta professada na Belle Époque.

Uma das bandeiras dos coletivos – ou que nome tenham – é a inclusão urbana. Daí tantos jovens que não usam ônibus ocupando as ruas. Eles encontraram nas divisas da cultura um motivo para se envolver numa realidade com a qual se relacionavam de forma epidérmica. É ganho. Não resolve o problema da arte, que não cabe numa cartilha, mas serve para romper com a pasmaceira. É emoção demais? Há risco de desafinar? A ver.

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