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Desgastada e barateada, a palavra comunidade parece estar sendo reinventada em Santa Maria após a tragédia que tirou a vida de quase 240 pessoas

Os analistas de segurança pública costumam dizer que os efeitos colaterais da violência são tão nefastos quanto. O pós-crime deixa um lastro de desagregação, cujo prejuízo costuma ser o esfacelamento da vida comunitária, uma arma letal contra a sociedade organizada. O cidadão que não sai mais à rua, a mãe que muda a rotina doméstica por medo, o garoto que não mais anda de bicicleta, e o que mais houver, nada mais representam do que a vitória do próprio crime sobre a convivência. Qual surpresa ao perceber que essa "quase verdade" da ciência da segurança pública encontrou seu avesso na "tragédia de Santa Maria". Cada repórter a tomar a palavra deixava escapar em meio às informações o encanto diante do surto de solidariedade que varreu a cidade. Era de se esperar, mas não na escala em que tem sido verificada.

Ora se fala dos médicos que servem cafezinhos aos parentes das vítimas. Ora das aproximadamente 2 mil famílias que ofereceram de forma irrestrita suas casas para os que vêm de fora. Ora se mostra o som e fúria algo trágico dos profissionais das UTIs, indo além do que se podia esperar, portando-se como voluntários da Cruz Vermelha num campo de guerra. Não parece temerário afirmar que Santa Maria pode se tornar um símbolo da força da comunidade, servindo de paradigma para a mais difícil das tarefas do nosso tempo – o "viver junto", sabendo-se "todos hóspedes", tal como expressa o filósofo da hospitalidade, Jacques Derrida, e sua comparsa nesse discurso, Anne Dufourmantelle.

Há pistas de que a soma de fatores em Santa Maria vá alterar o produto. Trata-se de uma cidade universitária bem particular. É município de médio porte, o que faz que a presença dos estudantes ali não se dilua debaixo dos néons, como acontece nas metrópoles. Os jovens ocupam o centro do cenário. São olhados. E agora mais cuidados do que nunca, algo excepcional num país que ainda carrega o ranço da tradição ibérica, pouco afeta aos moços e moças. Outro sintoma é que se trata de uma região tradicional. Vê-se aos poucos visitada por costumes da metrópole – uma boate, e de nome Kiss, é um exemplo disso –, mas deve tender aqui e ali à afirmação das relações de vizinhança, entre outras práticas que moviam as comunidades de escala humana. É assunto para uma tese, mas também questão urgente nesses tempos em que imperam as relações superficiais. Se em Santa Maria a comunidade se reinventa, é para lá que se deve olhar.

A palavra "comunidade" perdeu sua inocência. Invocava um bom lugar para estar, um paraíso preservado. Como todo o resto, porém, também se tornou uma mercadoria. A vida comunitária está à venda nos condomínios fechados, nos resorts e pacotes de viagem, nas escolas, entre outros espaços em que aparece como uma ação agendada, com hora para começar e terminar, e variações de preço. No formato "para consumo instantâneo", a comunidade ganha em impacto, perde em naturalidade. De garantidora da convivência e abrigo dos valores, passa a funcionar como um dispositivo de segurança. Resulta miúda. Pior: garante a segurança, mas sequestra a liberdade. Quer-se estar num grupo, como num ninho, mas difícil não padecer diante de códigos de regras destituídos de afeto, essa palavra tão cara, ou abrir mão do culto à individualidade.

É certo que o desejo de viver junto é uma força da natureza. Reinventa-se à revelia das condições desfavoráveis. O comunitário se move por espaços inimagináveis, como mostram as redes sociais. Mas longe de dizer que as microcomunidades ocasionais substituam a necessidade de se organizar em comunidades de sentido. Não se chega às camadas mais fundas sem atrito, como bem frisa Zygmunt Bauman. Sem pacto social não há solução.

É questão cara. A comunidade sobrevive como necessidade, mas fica cada vez mais volátil, tornando -se uma palavra desgastada. Está sujeita a perdas e danos. Não se pode esquecer que apenas homens e mulheres com vida em comum forte se interessam e se engajam nos destinos da sociedade. Se cresce o coro do "eu sozinho", diminui na mesma proporção a possibilidade de irmanar e de receber o outro. Sinistrose? Não. A decadência da ideia de comunidade salta aos olhos. Há cada vez mais divisas e fronteiras – como alerta o antropólogo Jonathan Friedman, ao se referir às barreiras arquitetônicas e sociais que nublam a visão dos outros. E de seus espaços, qual uma fumaça tóxica. É preciso se proteger desse mal abrindo janelas. É poético. É político.

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