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A cada nova sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo os processos relacionados à suposta tentativa de golpe de 8 de janeiro, o Brasil se depara com um cenário preocupante: o enfraquecimento deliberado das garantias fundamentais asseguradas pela Constituição. O que se presencia não são julgamentos conduzidos sob o rigor do devido processo legal, mas atos marcados por arbitrariedades e abusos que minam o direito à ampla defesa. Casos recentes – como a aceitação das denúncias contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e o ex-assessor Filipe Martins – escancaram essa tendência inquietante, reiterada na última semana, quando até mesmo uma testemunha de defesa, o ex-ministro Aldo Rebelo, foi ameaçada de prisão em plena audiência por suposto “mau comportamento”.
O episódio em questão merece ser relatado com clareza, pois ilustra com precisão o ambiente de intimidação que parece ter se instalado no plenário da mais alta Corte do país. Convocado como testemunha no processo do almirante Almir Garnier Santos, Rebelo tentava explicar, em linguagem acessível, o uso comum de figuras de expressão na língua portuguesa, como a frase “estar à disposição”, supostamente dita pelo militar ao então presidente da República Jair Bolsonaro.
Ministros que se colocam acima da lei, que se consideram donos do tribunal, tratam advogados com desprezo, que ameaçam testemunhas, como no caso de Aldo Rebelo, e que rotulam réus como 'golpistas' antes mesmo da instrução processual, não defendem a democracia: agridem-na
“Na língua portuguesa conhecemos que se usa a força da expressão. A força de expressão nunca pode ser tomada literalmente. Se digo que estou frito, não significa que esteja na frigideira. Quando estou apertado, não significa que estou sob pressão literal. ‘Estou à disposição’, essa expressão não deve ser lida literalmente...”, respondeu Rebelo. Nesse momento, Alexandre de Moraes, que ainda não havia iniciado suas perguntas, interrompeu o depoimento e perguntou a Aldo Rebelo se ele estava na reunião em que Almir Garnier teria dito a Bolsonaro que estava à disposição. “O senhor estava na reunião quando o almirante Garnier disse a expressão?”, questionou o ministro.
Diante da resposta negativa de Aldo Rebelo, Moraes o repreendeu, dizendo que Rebelo não tinha condição de avaliar a língua portuguesa e que deveria se ater apenas “aos fatos”. O ex-ministro da Defesa rebateu dizendo: “A minha apreciação da língua portuguesa é minha, e eu não admito censura”, ao que Moraes o ameaçou de prisão por suposto desacato à autoridade. “Se o senhor não se comportar, vai ser preso por desacato!”. O lamentável episódio continuou, com Rebelo perguntando se poderia ou não continuar com sua apreciação, e Moraes respondendo que a testemunha não poderia fazer juízo de valor em depoimento, apenas responder sobre “matéria fática”.
Aldo Rebelo então passou a responder que, dentro da Marinha, qualquer mobilização de tropas precisa passar por toda a cadeia de comando. Depois, o ex-ministro questionou se a própria investigação do caso levou isso em conta. “O que eu gostaria de saber é se o inquérito apurou essa estrutura de comando…”, disse. Mais uma vez foi interrompido, desta vez pelo procurador-geral da República Paulo Gonet, que afirmou: “Quem faz a pergunta é o advogado e a testemunha responde”, ao que Rebelo rebateu, dizendo não estar fazendo uma pergunta. Gonet insistiu: “Quem tem que saber alguma coisa somos nós”, e Alexandre de Moraes, novamente, interveio de forma destemperada para repreender Rebelo: “Se o senhor quiser saber, o senhor vai ler na imprensa”, disse o ministro do STF ao ex-deputado.
Não foi um fato isolado. Na mesma semana, em outra sessão, Moraes se referiu ao Supremo como “meu tribunal” ao interromper questionamentos da defesa de Anderson Torres. Chegou a ameaçar cortar o microfone do advogado de Torres e acusou uma testemunha de mentir, exigindo que “pensasse bem” antes de responder. São cenas que destoam profundamente da liturgia que se espera de um julgamento justo, especialmente em um caso com tamanha gravidade institucional. Em qualquer julgamento, mas sobretudo em casos politicamente sensíveis, como o que envolve uma suposta tentativa de golpe, é indispensável que os juízes ajam com rigor técnico, distanciamento emocional e compromisso inegociável com os princípios constitucionais.
O devido processo legal não é um mero capricho jurídico, mas a base sobre a qual se constrói a legitimidade de qualquer sentença. Há algo de profundamente alarmante quando ministros da Suprema Corte se arrogam o direito de interpretar o devido processo legal conforme suas próprias convicções e transformam o contraditório em um incômodo a ser contornado. Quando se julga uma acusação gravíssima, como a de tentativa de golpe de Estado, é ainda mais essencial que o processo siga rigorosamente as garantias constitucionais – o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência. No entanto, o que o Supremo tem demonstrado é disposição para atropelar esses princípios.
O devido processo legal é uma conquista civilizatória. Ele garante que até mesmo os piores criminosos tenham direito a um julgamento justo. Romper com esse princípio é legitimar o arbítrio – e é exatamente isso que tem se tornado recorrente no STF. Ministros que se colocam acima da lei, que se consideram donos do tribunal, tratam advogados com desprezo, que ameaçam testemunhas, como no caso de Aldo Rebelo, e que rotulam réus como “golpistas” antes mesmo da instrução processual, não defendem a democracia: agridem-na. O STF precisa urgentemente reencontrar a sobriedade, a contenção e o compromisso com a legalidade que dele se espera.



