
Enganaram-se todos os que imaginavam que as sanções aplicadas pelos Estados Unidos a Alexandre de Moraes freariam, de alguma forma, o ímpeto liberticida do ministro do STF e o fariam repensar algumas de suas decisões que atropelaram garantias e direitos básicos do cidadão. Dias atrás, o ministro, que já demonstrou em outras ocasiões julgar mais com o fígado que com o cérebro, resolveu acrescentar um novo item à já enorme lista de violações e abusos nos processos dos quais é relator, desde o inquérito das fake news até os processos do suposto “golpe” que teria sido tramado pela cúpula do governo federal no fim de 2022.
Em 9 de outubro, Moraes deu um passo inédito em sua escalada contra o devido processo legal e o direito à ampla defesa, destituindo unilateralmente os advogados de defesa dos ex-assessores presidenciais Filipe Martins e coronel Marcelo Câmara – ambos réus do “núcleo 2” do “processo do golpe”, ordenando que fossem substituídos por um defensor público. A manobra não tem nenhuma previsão legal; nenhum juiz pode simplesmente destituir a defesa de um réu a não ser em casos muito específicos, como omissão ou abandono. E, ainda que isso acontecesse, a escolha do novo defensor jamais caberia ao magistrado, e sim ao próprio réu – apenas se ele abrir mão desse direito é que se nomeia um defensor público ou um advogado dativo, segundo o artigo 265 do Código de Processo Penal.
O caso de Filipe Martins tem sido especialmente emblemático quanto à intensidade e à variedade dos abusos cometidos por Moraes nos últimos tempos
Ocorre que “omissão” e “abandono” estão muito longe de descrever o procedimento dos dois advogados de Martins e dos quatro defensores de Câmara. Pelo contrário: eles têm sido incansáveis no trabalho que lhes foi atribuído. Na véspera da destituição, a defesa de Filipe Martins havia solicitado prazo adicional para a apresentação de alegações finais, argumentando que a Procuradoria-Geral da República teria incluído novas provas e documentos após o encerramento da fase probatória, elementos que quais os advogados não teriam tido a oportunidade de rebater – alguns desses documentos, inclusive, não teriam sido protegidos pela chamada “cadeia de custódia”, que garante a integridade das evidências colhidas em uma investigação criminal. Isso está muito longe de ser omissão, pelo contrário: demonstra que a defesa está atenta e ciente dos direitos de seus clientes. Mas, para Moraes, isso não passaria de “abuso do poder de defesa” e “manobra procrastinatória” e até mesmo “litigância de má-fé” – práticas que, mesmo se fossem reais no caso em tela (porque não o são), não seriam justificativa para a destituição de uma banca de defesa.
O caso de Filipe Martins, recorde-se, tem sido especialmente emblemático quanto à intensidade e à variedade dos abusos cometidos por Moraes nos últimos tempos. O ex-assessor teve sua prisão preventiva decretada em 8 de fevereiro do ano passado, sob a alegação de que ele poderia tentar fugir do país, já que havia feito parte da comitiva presidencial que viajou aos Estados Unidos pouco antes do fim do mandato de Jair Bolsonaro e da posse de Lula. Tal viagem, no entanto, nunca ocorreu; em uma inversão bizarra do princípio básico pelo qual o ônus da prova cabe a quem acusa, a defesa de Martins se viu praticamente obrigada a apresentar várias evidências irrefutáveis de que ele estava no Brasil na virada de 2022 para 2023. Até mesmo a PGR o reconheceu, pedindo a soltura do ex-assessor, o que Moraes aceitou apenas cinco meses depois, ainda assim impondo outras medidas cautelares excessivas e inexistentes na lei brasileira. A fraude nos registros de entrada de Martins nos Estados Unidos está sendo objetivo de investigação nos EUA. A destituição de seus advogados, portanto, é mais uma aberração jurídica em uma lista já bastante longa.
No dia seguinte, entretanto, Moraes recuou e readmitiu os advogados. Teria o ministro percebido que a destituição foi longe demais até mesmo para os seus padrões? É certo que não. Primeiro, porque a readmissão tem caráter temporário, ou seja, o abuso pode ser retomado a qualquer momento; segundo, porque Moraes deu um prazo exíguo, de 24 horas, para a apresentação das alegações finais (prazo cumprido tanto pelos advogados de Martins quando pelos de Câmara); e terceiro, porque seu breve despacho não admite nenhum tipo de erro na decisão da véspera, apenas suspendendo-a momentaneamente, como se Moraes estivesse, em um ato de suprema magnanimidade, fazendo um grande favor a Martins e Câmara, e não corrigindo um erro grotesco.
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Destaque-se, aqui, a postura bastante tímida de uma das entidades da sociedade civil que mais poderiam influenciar para o fim da onda de abusos: a Ordem dos Advogados do Brasil. Um dos advogados de Martins, Jeffrey Chiquini, afirma que o presidente do Conselho Federal da OAB, Beto Simonetti, agiu nos bastidores junto a Moraes para conseguir a readmissão dos advogados de Martins e Câmara. Louvável, certamente, mas insuficiente. Em público, a entidade foi muito mais tíbia, afirmando apenas que “tomou conhecimento da decisão” e que “os fatos serão analisados com serenidade e responsabilidade”. Como já afirmamos inúmeras vezes, é no silêncio de quem deveria denunciar as arbitrariedades que o abuso prospera. Uma decisão evidentemente ilegal como a do dia 9 mereceria repúdio imediato e firme, e não promessas de uma “análise” que, com a readmissão dos advogados, talvez nem venha mais a ser feita.
Tudo isso tem nome: é cerceamento de defesa. Por muito menos que isso o Supremo já anulou julgamentos e condenações de pessoas que inclusive confessaram seus crimes reais, e é com razão que os advogados de Martins e de Câmara pedem a anulação dos processos contra os dois ex-assessores. Um pedido justo, razoável, mas que com toda a certeza será negado no julgamento marcado para dezembro, já que a maior parte dos ministros que têm julgado os casos do “golpe” e do 8 de janeiro substituiu despudoradamente a justiça pelo justiçamento.



