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Alexandre de Moraes, presidente do TSE e ministro do STF.
Alexandre de Moraes multou coligação de Jair Bolsonaro em R$ 22,9 milhões e alegou ter havido litigância de má-fé.| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, levou apenas poucos minutos para exigir que a coligação de Jair Bolsonaro questionasse também os resultados das urnas eletrônicas antigas no primeiro turno e não apenas no segundo turno do pleito presidencial, como pretendia a representação inicial apresentada na terça-feira. Em seguida, recebida a resposta da equipe jurídica de Bolsonaro, Moraes precisou de poucas horas para rejeitar a ação e multar PL, PP e Republicanos em R$ 22,9 milhões. Um observador desinformado poderia até considerar essa rapidez algo notável em um Judiciário muitas vezes criticado por sua morosidade. Mas o que vimos neste caso passa longe de uma demonstração de eficiência – é algo bastante diferente, e muito mais grave.

A coligação de Bolsonaro recorreu ao TSE com base em auditoria do Instituto Voto Legal (IVL), comandado pelo engenheiro Carlos Rocha, um dos desenvolvedores do primeiro modelo da urna eletrônica. O IVL afirmou que as urnas de modelos anteriores ao de 2020 tinham problemas de identificação que impediam sua individualização, inviabilizando qualquer tentativa de comprovar a autenticidade da votação. Nas demais urnas, do modelo 2020, este problema não teria ocorrido – considerando apenas os votos válidos depositados nesses equipamentos, Bolsonaro teve 51,05% contra 48,95% de Lula; nas urnas que a coligação de Bolsonaro pretendia impugnar, o petista teve a maioria.

Quando a corte eleitoral dá como certa a má-fé de quem levanta qualquer suspeita sobre a votação eletrônica, ainda que com argumentos técnicos, ela passa a agir por meio da intimidação

Não é nosso objetivo, no momento, fazer uma análise técnica das alegações da equipe de Bolsonaro, de sua eventual solidez ou fragilidade, ou afirmar se o recurso deveria prosperar ou ser rejeitado. O que nos interessa, aqui, é a maneira destemperada como Moraes mandou tudo para a lata do lixo, chamando o pedido de “esdrúxulo e ilícito”, “atentatório ao Estado Democrático de Direito” e “inconsequente”, ainda por cima punindo a coligação pelo mero ato de buscar o Poder Judiciário: além da multa milionária, o presidente do TSE ainda bloqueou o acesso de PL, PP e Republicanos ao Fundo Partidário, ordenou a abertura de um processo administrativo pela Corregedoria-Geral Eleitoral e mandou que a auditoria fosse incluída no abusivo inquérito das “milícias digitais” no Supremo Tribunal Federal (STF), do qual o próprio Moraes é o relator.

Para ilustrar o ponto em tela, vale a pena recordar toda a saga de Donald Trump no Judiciário norte-americano após as eleições de 2020, nas quais foi derrotado por Joe Biden; a equipe jurídica do republicano acionou tribunais em diversos estados alegando fraudes na votação ou na contagem de votos. Foram impetradas dezenas de ações, e em todas elas Trump saiu derrotado; mas em nenhum momento se pretendeu negar-lhe o direito de buscar a Justiça, nem de ter suas alegações analisadas pelas cortes, ainda que elas não procedessem. Isso porque nos Estados Unidos – e, pensava-se, também no Brasil – está bem consolidada a noção de que recorrer à Justiça ao sentir-se prejudicado é direito básico de qualquer pessoa física ou jurídica.

O direito a se fazer ouvir por um tribunal imparcial – to have one’s day in court, na expressão inglesa – é um avanço civilizatório conquistado a duras penas no Ocidente, e que por si só tem um efeito de desestimular a imposição das próprias vontades pela força, mesmo quando o resultado é desfavorável. Este também é um direito de Bolsonaro e de sua campanha, que o empregam no mais estrito respeito à legalidade institucional. Assim como também é direito do presidente e sua coligação escolher qual a melhor estratégia argumentativa para conseguir seu objetivo. Do ponto de vista lógico, Moraes não está errado ao afirmar que, uma vez que os mesmos equipamentos são usados nos dois turnos, não faz sentido questionar os resultados do segundo turno sem questionar também os do primeiro – tanto que alguns dos deputados bolsonaristas eleitos afirmaram publicamente que era preciso ampliar o escopo da ação ainda que isso lhes custasse os mandatos conquistados. A opção por insistir na invalidação apenas dos votos para presidente depositados em 30 de outubro enfraquece a ação; quem escolhe tal estratégia o faz por sua própria conta e risco, mas continua no seu direito.

Disso, no entanto, não se depreende automaticamente que a ação de Bolsonaro configurasse um caso de litigância de má-fé, como fez Moraes. Que haja querelantes que abusam do seu direito de acesso à Justiça é muito evidente, mas os códigos processuais descrevem com precisão as situações que configuram a litigância de má-fé, e que não se aplicam ao caso em tela. O questionamento apresentado pelo IVL seguiu as prescrições da Resolução 23.673/2021 do TSE, que disciplina a “verificação extraordinária” dos resultados de uma eleição, incluindo, por exemplo, o plano de trabalho para a verificação dos dados das urnas questionadas.

Ainda que tais alegações sejam improcedentes – e, como afirmamos, não é nosso objetivo avaliá-las aqui –, o TSE não contribui para a pacificação do país quando responde a elas sem a criteriosa análise técnica, mas com terminologia agressiva e medidas como as adotadas neste caso. Em vez de dar aos argumentos a atenção necessária e uma resposta bem embasada, que poderia inclusive ajudar a trazer a tão necessária distensão para uma sociedade ainda em pé de guerra devido ao desfecho do processo eleitoral, o TSE apenas reforça a impressão – criada pela própria corte – de que há assuntos dos quais simplesmente não se pode falar, incluindo a lisura de um processo que o cidadão comum já não tem como compreender sem conhecimentos profundos de tecnologia da informação. Quando a corte eleitoral dá como certa a má-fé de quem levanta qualquer suspeita sobre a votação eletrônica, ainda que com argumentos técnicos, ela passa a agir por meio da intimidação, e com isso desestimula a própria busca pela Justiça, em um retrocesso civilizatório que se soma à recente tendência de ataque a direitos fundamentais como a liberdade de expressão.

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