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A primeira cena do documentário Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen no final da década de 80, explica com a frieza de um anestesista o eterno retorno do nazismo. Numa tomada aérea, deslinda-se um legítimo vilarejo germânico, com grama aparada na tesoura e flores nas janelas. Enquanto o "tapete mágico" conduz o espectador por aquele paraíso bucólico, Bruno Ganz – o Paulo José dos alemães – narra em tom sereno que Hitler, antes de existir como líder, habitava a alma de sua gente.

É uma afirmação demolidora. O contraste entre a singeleza da paisagem aldeã e a invocação dos horrores promovidos pelo Füher tem o efeito de uma rasteira. Com os fundilhos no chão, fica-se matutando como o belo e o grotesco podem estar tão próximos. Parece injusto que aquelas pessoas tão decentes e cuidadosas com as hortênsias carreguem algum pecado. E chega-se a duvidar se de fato os moradores daqueles chalés de madeira, nos quais adoraríamos passar férias, seriam mesmo capazes das atrocidades cometidas em Auschwitz.

A resposta é sim. Eles são capazes de fazer o mal. E nós também. Uma das estratégias do fascismo é que ele se reveste da simplicidade de uma casinha na montanha. Ninguém está livre de admirá-la. Diante das situações mais complexas – por escapismo, comodidade ou ignorância – pode-se a adotar a tirania como medida de todas as coisas, ainda que ela pareça inocente como um conselho dado pela vovozinha.

Como já disse o escritor israelense Amós Oz, um dos remédios nessas horas de tormenta da alma é a alteridade. "Os fanáticos nunca imaginam o outro", declara. Infelizmente, a teoria de Oz não é ensinada para as crianças enquanto as mães lhes dão papinhas na boca. À medida que o mundo se amesquinha, inclusive, essa conversa goza de cada vez menos popularidade, o que favorece a lógica da intolerância.

Nas últimas semanas, os paranaenses se depararam com o efeito devastador dessa "arquitetura da destruição". Em 21 de abril, no município de Quatro Barras, um conflito ideológico entre simpatizantes de um grupo neonazista teria levado ao assassinato dos universitários Bernardo Dayrell Pedroso, de 24 anos, e Renata Waetcher Ferreira, 21, ambos simpatizantes moderados da causa.

Interessa aqui menos o caso – divulgado à exaustão pela mídia, inclusive internacional – e mais o sentido da cerimônia macabra que tirou a vida do casal. É certo que não se pode superestimar o movimento neonazista, como se estivesse perto de tomar o Palácio Iguaçu. Como já escreveu a historiadora Marionilde Magalhães, da UFPR, autoridade no assunto, não se trata ao menos de um grupo coeso e articulado. O que não se pode desprezar, contudo, são os sintomas que fazem o neonazismo existir, em maior ou menor escala, nas nossas muitas aldeias, sem que nem sequer nos demos conta.

Chama atenção o que dizem os amigos e familiares dos envolvidos: ninguém notava nada. Nenhum brado de guerra. Nenhum rompante de ultradireitismo. Não causa espanto – ouve-se a torto e a direito elogios à pena de morte, à aplicação de penas severas aos adolescentes, à sociedade policialesca. A sociedade da qual faziam parte Dayrell e Renata pode ser estranha na forma, mas talvez seja mais tolerada no pensamento do que se imagina.

Em miúdos, esses grupos – que precisam ser observados com lupa –podem ser poucos, mas dizem muito sobre razões e sensibilidades que circulam por aí, com a facilidade das músicas saltitantes da Ivete Sangalo. A dizer: os jovens neonazistas que rejeitam a diferença e, por tabela, o outro, defendem governos durões e acreditam, piamente, que o mundo foi melhor um dia – talvez na ocasião em que branco casava com branco. Simples como isso.

Tem mais. Acreditam que se cada um cuidasse do quintal de sua casa e que se as pessoas não ficassem mudando de cidade e de país, metade dos problemas desceria pelo ralo. Marionilde chama isso de uma espécie de horror à invasão de territórios. Já se viu esse filme. Por fim, há o culto ao corpo e à limpeza, e um fascínio pela violência, recurso para quando não se resolve alguma coisa por bem.

Como se vê, muito do que se ouve por aí em conversa de corredor se parece com a prosa aterrorizante que ronda em sites e em sociedade secretas fascistas. Melhor ligar o alerta. O ressentimento econômico e cultural grassa ligeiro em tempos de penúria, tentando adotar explicações rápidas e rasteiras.

Estão aí para comprovar os muros nas favelas cariocas, as vans cheias de mendigos financiadas pelas cidades prósperas e até as grades da BR-277, na altura do Cajuru. O neonazismo, diferentemente do nazismo, não pleiteia expansão nem tem líderes de que se orgulhar. O que o "neo" pede é proteção para o que julga um perigo. Essa gente que faz culto em chácaras na região metropolitana tem medo – e o medo, tão estimulado, é uma forma de fascismo contemporâneo. Para bons entendedores, basta.

É preciso ter horror ao nazismo. Não se discute. Aconselha-se, inclusive, prevenir-se desse mal. Para tanto, basta ter coragem de olhar a aldeia de cima, como no documentário de Peter Cohen. Tomara não se esteja gerando nenhum monstro em meio às flores da janela.

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