
A oposição comemorou, na noite de quarta-feira, a aprovação do requerimento de urgência para o projeto de lei que prevê anistia aos réus e condenados do 8 de janeiro – o resultado da votação foi uma demonstração de força, com 311 votos favoráveis, três a mais que o necessário para aprovar uma emenda à Constituição. O projeto em questão é o 2.162/2023, que beneficiaria todos os que participaram de manifestações políticas e eleitorais entre o segundo turno das eleições de 2022 e a entrada em vigor da lei. Mas, na manhã desta quinta-feira, o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), escolhido para ser o relator do projeto, já tratou de jogar um balde de água fria nas esperanças da oposição, defendendo não uma anistia, mas uma simples redução de penas que “possa agradar a todos”, referindo-se à direita e à esquerda – uma solução que ficaria longe de corrigir as muitas e graves injustiças cometidas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.
Recapitulemos muito brevemente o que tem ocorrido no Judiciário brasileiro sob o pretexto da “defesa da democracia”. Os réus do 8 de janeiro foram denunciados de forma genérica, sem a necessária individualização da conduta; e vêm sendo condenados da mesma forma, a penas absurdamente desproporcionais por crimes de cujo cometimento não há provas, em violação do princípio do juiz natural (pois eles não têm prerrogativa de foro) e do direito à ampla defesa, em julgamentos virtuais nos quais não há nem mesmo a garantia de que os ministros tenham visto os vídeos gravados pelos advogados de defesa. Já o “núcleo 1” do chamado “processo do golpe”, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, foi condenado pelo STF (novamente violando o princípio do juiz natural) por crimes que, mesmo admitindo-se terem sido cogitados e planejados, não chegaram a ser de fato tentados, circunstância que eliminaria a punição, segundo o Código Penal. A Gazeta do Povo já detalhou exaustivamente, neste espaço, todos os abusos cometidos nestes julgamentos.
A anistia surge como a opção mais razoável no momento. Não é a ideal, mas é a única forma possível, nas circunstâncias atuais, de reverter as injustiças perpetradas pelo STF
Por infinitamente menos que isso, o STF já anulou julgamentos e condenações por crimes reais – muitos deles devidamente confessados –, e este seria o desfecho ideal para os processos do 8 de janeiro e da suposta trama golpista. Mas o atual Supremo jamais teria a decência de admitir seus erros, pois insiste neles e até dobra a aposta. É por isso que a anistia surge como a opção mais razoável no momento. Não é a ideal, porque deixa implícito de alguma forma que se estaria perdoando certos crimes efetivamente cometidos, o que não é o caso; mas é a única forma possível, nas circunstâncias atuais, de reverter as injustiças perpetradas pelo STF. E, quando falamos em anistia, obviamente não nos referimos a uma mera redução de pena, que remete mais a algum tipo de costura política (inclusive com atores que deveriam estar longe de qualquer atuação política) que a um desejo de se fazer justiça.
Bem sabemos que uma anistia acabaria também beneficiando quem não a mereceria: pessoas que de fato vandalizaram as sedes dos três poderes, ou que de fato queriam fazer do 8 de janeiro o estopim para um golpe de Estado, como afirmavam mensagens enviadas por alguns dos réus, que pretendiam causar tumulto para provocar uma reação das Forças Armadas, que por sua vez tomariam o lado dos manifestantes contra o governo recém-empossado. Esta é, realmente, uma consequência indesejada; por outro lado, a verdade é que ninguém estaria falando em anistia se a Procuradoria-Geral da República tivesse feito bem o seu trabalho, individualizando as condutas na denúncia de cada réu, e se os ministros do STF tivessem julgado cada um pelo que efetivamente fez (e não pelo que cogitou ou planejou), sem muletas como a tese do “crime multitudinário”. Mas não: todos optaram por denunciar e condenar “no atacado”; assim, na impossibilidade jurídica de uma anistia “no varejo”, será preciso beneficiar alguns poucos que mereceriam punição para se fazer justiça com a imensa maioria que jamais deveria ter sido denunciada, quanto mais condenada.
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A anistia, neste caso, não é só o restabelecimento da justiça; é também medida perfeitamente constitucional. Está dentro das atribuições do Legislativo, como diz o artigo 48, inciso VIII, da Constituição; e não contempla o perdão a nenhum crime listado no inciso XLIII do artigo 5.º da Carta Magna, pelo qual não podem ser alvo de anistia “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”. A esse respeito, recorde-se que a lei dos crimes hediondos (8.072/90) não inclui os crimes contra o Estado de Direito que o STF tem atribuído aos manifestantes do 8 de janeiro e aos supostos golpistas – mesmo o crime de associação criminosa, que tem rendido condenações nestes casos, só é considerado hediondo quando “direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado”, o que também não acontece em relação ao 8 de janeiro ou ao suposto golpe. Por isso, qualquer manifestação antecipada de ministros do STF prometendo derrubar uma eventual anistia, além de ser manifestação de teor político-partidário vetada pela lei dos crimes de responsabilidade (1.079/50), é mais uma confirmação de que os membros da cúpula do Judiciário realmente se julgam acima de tudo, inclusive da Constituição que deveriam proteger.
Todos os brasileiros realmente interessados na autêntica justiça para com os manifestantes do 8 de janeiro e demais réus em outros processos deveriam ponderar os pontos positivos na concessão de uma anistia – medida, aliás, que já foi empregada no passado com o mesmo objetivo, beneficiando muitos que hoje se mostram contrários à sua aplicação a pessoas do outro lado do espectro político-ideológico. Ela é, hoje, a alternativa mais razoável para corrigir erros e abusos do Judiciário, desde que conduzida de forma correta, sem “acordões” ou composições que desfigurem a proposta e perpetuem a injustiça de se criminalizar quem não cometeu crime algum.



