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| Foto: Brendan Smialowski/AFP

O presidente norte-americano, Donald Trump, prometeu que nos próximos dias anunciará seu escolhido para ocupar uma cadeira na Suprema Corte norte-americana. O debate sobre o sucessor de Anthony Kennedy, que anunciou sua aposentadoria, tem mobilizado opiniões e militâncias de forma quase tão apaixonada quanto vinha sendo, até há pouco, a discussão sobre as políticas de imigração de Trump.

A nomeação cujo processo está em curso é a segunda que cai no colo de Trump – nos Estados Unidos, os magistrados da Suprema Corte, chamados justices, têm mandato vitalício, interrompido apenas pela morte ou pela aposentadoria voluntária. No início de 2016, a morte inesperada de Antonin Scalia abriu uma vaga e o então presidente, Barack Obama, nomeou Merrick Garland, mas a maioria republicana no Senado emperrou o processo, alegando que não era conveniente aprovar a nomeação de um justice no último ano de um mandato presidencial, e que a escolha deveria ficar para o sucessor de Obama. Donald Trump acabou eleito e preferiu Neil Gorsuch, que assumiu o posto em 2017.

No Brasil, é fundamental que os pré-candidatos à Presidência digam que tipo de magistrados querem em nossa suprema corte

Kennedy é o magistrado que estava havia mais tempo na Suprema Corte, tendo sido nomeado em 1988 por Ronald Reagan. À medida que o tribunal foi sendo redesenhado com novas nomeações, Kennedy acabou sendo o voto decisivo em muitas das questões mais controversas, especialmente do ponto de vista moral. No caso do aborto, por exemplo, o juiz não estava entre os que pretendiam reverter Roe v. Wade, a decisão de 1973 que permitiu o aborto no país inteiro, mas por outro lado votou várias vezes em favor de restrições à prática. Kennedy adotou o mesmo comportamento em relação à pena de morte, admitindo o seu uso, mas restringindo sua aplicação. Em 2016, Kennedy fez parte da maioria segundo a qual o casamento homoafetivo deveria ser legalizado em todos os estados. E votou contra restrições ao direito de ter armas em pelo menos duas ocasiões importantes. Isso mostra como é difícil encaixar a atuação do juiz em uma “caixinha ideológica”.

É justamente esse caráter de Kennedy como um “voto de Minerva” em questões morais que vem tirando o sono do Partido Democrata. A escolha de Trump pode criar uma maioria de cinco justices determinados a reverter Roe v. Wade, no que seria uma grande vitória para a defesa da vida desde a concepção, com repercussões que transcenderiam os Estados Unidos. Seria o fim de um processo que temos visto também no Brasil, em que o Judiciário toma para si a prerrogativa de legislar sobre o aborto, passando por cima do Poder Legislativo. O que ocorreu em 1973 nos EUA é bastante similar ao que acontece agora no Brasil, em que um partido político, o PSol, pretende que o Supremo Tribunal Federal legalize o aborto por meio da ADPF 442.

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Mas resumir toda a controvérsia a respeito da nomeação à questão do aborto é estreitar demais o impacto da escolha. A Suprema Corte americana vem sendo chamada a discutir diversos outros casos-chave, em que estão em jogo liberdades essenciais como a de expressão e a liberdade religiosa. Um justice comprometido com tais liberdades, avesso ao ativismo judicial, disposto a interpretar a Constituição do país de acordo com o que efetivamente diz o texto, e não de acordo com as próprias convicções ou com um alegado “espírito do tempo” que autorizaria um distanciamento em relação ao que está nas leis, seria um presente para os Estados Unidos, com um impacto global, dada a repercussão das decisões da Suprema Corte fora do país.

Isso nos recorda que, também no Brasil, o próximo presidente poderá ajudar a moldar o perfil do STF. Quem for eleito em outubro nomeará pelo menos dois ministros, já que Celso de Mello e Marco Aurélio Mello chegam aos 75 anos – a idade obrigatória para a aposentadoria – em 2020 e 2021, respectivamente. Em caso de reeleição, serão mais dois ministros, pois Rosa Weber e Ricardo Lewandowski atingem a idade-limite em 2023. Isso se não houver outras aposentadorias voluntárias, como foi o caso recente de Joaquim Barbosa. No entanto, esse tema tem sido praticamente ignorado na pré-campanha eleitoral (com exceção de propostas surreais, como a elevação do número de ministros sugerida por Jair Bolsonaro). Com a importância crescente que o STF tem assumido na vida pública brasileira – em boa parte devida justamente a um gosto crescente dos ministros pelo ativismo judicial –, é fundamental que os pré-candidatos digam à nação que tipo de magistrados querem em nossa suprema corte.

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