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Audiência no STF sobre Marco Civil da Internet reuniu ministros da corte e do governo Lula.
Audiência no STF sobre Marco Civil da Internet reuniu ministros da corte e do governo Lula.| Foto: Carlos Alves Moura/STF

Governo e Supremo contra as Big Techs, e todos contra a liberdade de expressão. É possível resumir assim, em pouquíssimas palavras, o resultado dos dois dias de audiência pública no Supremo Tribunal Federal que discutiram a responsabilização das empresas de mídia social quanto aos conteúdos publicados por seus usuários. Uma discussão que deveria ter sido puramente técnica acabou, como era de se esperar, sequestrada por aqueles que, com pouquíssimas exceções, usaram a ocasião para defender conceito tão peculiar quanto equivocado de liberdade de expressão, que basicamente consiste em suprimir o discurso que lhes é desagradável.

A audiência tinha como objetivo alegado discutir um único artigo do Marco Civil da Internet, o 19, cujo caput prevê que “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. De início, é preciso atentar para o fato de tal discussão se dar no âmbito do STF. Ainda que o pano de fundo fosse o de dois casos que estão sendo julgados pela corte, de imediato ficou evidente que a discussão não girava em torno dos episódios concretos ou de como a lei se aplicava a eles, mas sobre a própria conveniência do texto legal, o que é missão do Legislativo, não do Judiciário.

Sem que recuperemos a convicção firme sobre o caráter essencial dessa liberdade, qualquer discussão sobre regulamentação de mídias sociais corre o risco de descambar para a legalização da censura pura e simples

Sobre esse ponto, até é possível alegar que o artigo 19 dá uma proteção excessiva às Big Techs ao responsabilizá-las apenas pelo que não for apagado mesmo com determinação judicial de remoção de conteúdo. Afinal, há conteúdos nitidamente criminosos – pensemos, por exemplo, em conteúdos racistas ou de pornografia infantil – que não só podem como devem ser removidos por iniciativa das próprias mídias assim que elas se dão conta da existência de tais publicações, sem ter de esperar por uma decisão judicial para isso. Em artigo recente na imprensa paulista, os criadores do Marco Civil da Internet alegaram que esse tipo de situação já se encontra contemplado na expressão “ressalvadas as disposições legais em contrário”, mas sugerem que a lei explicite melhor tais casos, da forma mais objetiva possível. Entretanto, como dissemos, esta seria tarefa que caberia ao Legislativo, dispensando a necessidade de audiências no Supremo a esse respeito.

No entanto, a quase totalidade das manifestações na audiência – seja de ministros do Supremo, de integrantes do governo federal, das próprias Big Techs e de membros da sociedade civil organizada – extrapolou completamente o âmbito da discussão sobre o artigo 19 do Marco Civil. Tanto na terça-feira quanto na quarta-feira, o que se viu foi um festival de manifestações pedindo mais e mais censura contra fake news, “discurso de ódio”, “desinformação”, “ataques à democracia” e “teorias da conspiração”, em um afã que usa termos polidos como “defesa da democracia” para esconder uma autêntica convicção liberticida que se aproveita, como agravante, da ausência completa de preocupação em definir estes conceitos com a precisão que o tema exige.

A Gazeta do Povo vem insistindo há muito que a retomada do respeito à liberdade de expressão é uma prioridade nacional. De tanto repetirem que “a liberdade de expressão não é absoluta” (e de fato não o é), autoridades e ministros parecem ter se convencido de que, na verdade, ela é meramente acessória. Mas não; a liberdade de expressão é um pilar da democracia, e não pode ser relativizada da forma como vem ocorrendo no Brasil. Sem que recuperemos a convicção firme sobre o caráter essencial dessa liberdade, qualquer discussão sobre regulamentação de mídias sociais corre o risco de descambar para a legalização da censura pura e simples, ajudada pela confusão geral que coloca no mesmo balaio o crime contra a honra, a informação factual inverídica, a crítica legítima, afirmações de caráter opinativo, possíveis explicações para determinados fatos e uma miríade de outras modalidades de manifestação nas mídias sociais. Ocorre que essa confusão é benéfica para muitos dos participantes deste debate, pois com isso “fake news”, “discurso de ódio”, “ataques à democracia” e expressões semelhantes se tornam muletas que permitem a supressão de qualquer discurso que lhes desagrade e a imposição de um modo de pensar único. Isso explica, por exemplo, que o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, tenha defendido na audiência a necessidade de um “freio institucional que permita uma reorientação cultural e ideológica da sociedade” (grifo nosso).

Este processo, lamentavelmente, vem sendo levado adiante pelos mais altos escalões do poder. Em muitas ocasiões, já explicamos como o STF tem protagonizado o “apagão da liberdade de expressão” no país. Do governo federal nem é preciso falar, empenhado que está na criação de seu “Ministério da Verdade” e em reescrever a história recente dos escândalos de corrupção no Brasil. Diante de um Alexandre de Moraes ou de um petista padrão, as Big Techs podem até ter soado como paladinas da liberdade de expressão na audiência, mas também elas já demonstraram seu viés político-ideológico na moderação de conteúdos, algo que os Twitter Files só tornaram mais evidente. O mundo dos sonhos das mídias sociais é aquele em que elas são legalmente caracterizadas como plataformas neutras, sem sofrer responsabilização pelo que nelas é publicado, mas ao mesmo tempo moderam ou suprimem conteúdos arbitrariamente, sem transparência nenhuma, com critérios próprios, agindo não como plataformas, mas como editores.

Há pouquíssimo interesse em combater o apagão conceitual a respeito de cada tipo de discurso e da proteção que a Constituição concede a cada um deles ao tratar a liberdade de expressão como garantia individual

Os raros lampejos de defesa da liberdade de expressão vieram de uma fala específica do gerente jurídico do Facebook no Brasil, que na terça-feira alertou para o risco de as mídias passarem a excluir qualquer conteúdo meramente suspeito de ilegalidade; e do advogado Rodrigo Xavier Leonardo, da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, que, além de lembrar que o STF não era o locus adequado para aquela discussão, foi bastante enfático em seu aviso de que havia a possibilidade de enveredarmos para “o pior tipo de censura: a censura invisível (...) a censura escondida; é a censura que não pode ser sindicada”, caso a responsabilidade fosse colocada toda na mão das Big Techs sem a devida conceituação do que está ou não protegido pela liberdade de expressão.

Infelizmente, esses dois dias de audiência no STF mostraram que há pouquíssimo interesse em combater o apagão conceitual a respeito de cada tipo de discurso e da proteção que a Constituição concede a cada um deles ao tratar a liberdade de expressão como garantia individual. Os que ganham com a confusão são os mesmos que estão em posições de decisão, e que usam esses conceitos definidos de forma difusa e imprecisa como pretexto para ir atrás de qualquer discurso que eles queiram perseguir, ainda que se trate de opiniões ou críticas legítimas. Se esse animus prevalecer à medida que projetos de regulamentação de mídias sociais avançarem no país, podemos prever tempos ainda mais difíceis para a liberdade de expressão no Brasil.

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