
Ministros do STF sempre fizeram muito pouco caso de relações que, em qualquer contexto da iniciativa privada, representariam conflito de interesse evidente – não muito tempo atrás, o então presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, defendeu as viagens de ministros a eventos no exterior, com pouca ou nenhuma transparência a respeito de quem banca passagens e hospedagens. Mas dois casos recentes extrapolam o campo das relações controversas dos ministros e já entram no terreno do escândalo puro e simples – ambos envolvem o Banco Master, agora liquidado pelo Banco Central e cujo dono, Daniel Vorcaro, é investigado inclusive por suspeita de fraude bilionária.
Em 28 de novembro, Dias Toffoli voou para Lima, onde seu time do coração, o Palmeiras, disputaria a final da Libertadores no dia seguinte. Em vez de comprar uma passagem em um voo comercial, no entanto, o ministro aceitou uma carona no jatinho particular do empresário Luiz Osvaldo Pastore, tendo como companheiro de viagem o advogado Augusto Arruda Botelho, que defende Luiz Antônio Bull, um dos investigados na Operação Compliance Zero, preso pela Polícia Federal em 18 de novembro e que deixou a cadeia no mesmo dia da partida a que Toffoli assistiria no Peru.
Toffoli demonstra desprezo total pela necessidade de os juízes manterem uma postura institucional que afaste a mínima suspeita de favorecimento a qualquer das partes
Enquanto Toffoli e Botelho iam ao Peru, a defesa do Banco Master apresentava um recurso pedindo que o caso “subisse” para o STF, devido à presença de um deputado federal em um dos contratos, e Toffoli foi sorteado como relator. Em vez de pedir que outro ministro assumisse a relatoria, ele “matou no peito” e não só aceitou o recurso como ainda impôs um sigilo inexplicável e injustificável sobre as investigações, transformando-as em uma caixa-preta à qual pouquíssimas pessoas têm acesso.
O mero fato de magistrado e advogado terem viajado juntos, antes que Toffoli fosse sorteado para o caso, por si só não basta como indício de alguma relação escusa. Mas, ao aceitar a relatoria depois que a viagem aconteceu e, pior ainda, mantê-la depois que o país inteiro soube da carona compartilhada no jatinho, Toffoli demonstra desprezo total pela necessidade de os juízes manterem uma postura institucional que afaste a mínima suspeita de favorecimento a qualquer das partes. Quem, em sã consciência, pode condenar quem questione a autoridade moral de Toffoli para relatar o caso do Master?
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E, quando o país já se indignava com a carona aérea de Toffoli ao lado do advogado de uma causa bilionária que agora está sob sua responsabilidade, estoura outro escândalo ainda mais comprometedor: os detalhes do contrato do Master com o escritório de advocacia Barci de Moraes, de Viviane Barci de Moraes, mulher do ministro Alexandre de Moraes. Por serviços de assessoria e consultoria jurídica, o banco pagava a vultosa soma de R$ 3,6 milhões mensais, ou R$ 129 milhões no espaço de três anos. O contrato estava no celular de Vorcaro, com mensagens nas quais o dono do Master dava prioridade total aos pagamentos, dizendo que eles “não podiam deixar de ser feitos em hipótese alguma”.
Só os muito ingênuos (como os que se tranquilizam com o fato de Toffoli ter dito a interlocutores que não falou sobre o Banco Master com Botelho) haverão de acreditar que Vorcaro escolheu contratar e pagar regiamente o escritório da esposa de Moraes por sua notável expertise jurídica; muito mais plausível é que o banqueiro, já muito próximo de gente graúda no Executivo e no Legislativo, buscasse o mesmo no Judiciário – o Master, aliás, aparece como patrocinador de eventos no exterior dos quais Moraes, Toffoli e outros ministros do STF participaram. Esse tipo de aproximação é consequência natural de uma decisão de 2023, na qual o Supremo permitiu que juízes pudessem julgar ações em que figuram como partes clientes de escritórios em que cônjuges, companheiros ou parentes desses magistrados trabalhem ou sejam sócios.
As relações indecentes entre ministros e o Master são a cereja em bolo repleto de arbítrios, ilegalidades, e atitudes nada condizentes com o cargo que ocupam
Apontar essas situações – que, como dissemos, criam conflitos de interesse que violam qualquer código de conduta na iniciativa privada – e afirmar que elas desqualificam Toffoli e Moraes (se não legalmente, ao menos moralmente) para atuar em qualquer ação envolvendo o Banco Master não é nenhum “ataque à democracia”, por mais que os ministros adorem deslegitimar nestes termos qualquer crítica que se lhes faça. O mínimo que se espera de membros da principal corte do país é que tenham a decência de se comportar de modo que afaste qualquer suspeita sobre sua atuação, seus votos e suas decisões.
O lamentável episódio de julho deste ano, quando Moraes mostrou o dedo do meio a torcedores durante uma partida de seu time, não foi arroubo momentâneo, mas a manifestação física de algo que os ministros do Supremo, com raras exceções, têm feito a todo o Brasil, incluindo suas leis e sua Constituição. As relações indecentes entre ministros e o Master são a cereja em bolo repleto de arbítrios, ilegalidades, e atitudes nada condizentes com o cargo que ocupam: inquéritos abusivos, abolição das liberdades e garantias democráticas, atuação político-partidária, ambições de protagonismo e poder desmedidos em violação à independência entre poderes, tudo isso sem nenhum tipo de contenção ou prestação de contas. Enquanto persistir a omissão dos que deveriam exercer o papel constitucional de contrapeso e de outros atores políticos que têm nas mãos as ferramentas para denunciar o abuso (como a CPI do Abuso de Autoridade na Câmara, que Hugo Motta segura de modo covarde), continuaremos assistindo a esses e outros escândalos.



